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Em 2001, a Rede Europeia das Cidades dos Descobrimentos promoveu no Porto o seu fórum anual. O tema a discutir foi “Olhares Plurais sobre a Cidade”. Houve vários painéis e o último intitulou-se “O olhar das Crianças”. Pretendia ser um olhar informal em que “autarcas responsáveis pela gestão da cidade” debatessem “entre si e com os especialistas convidados a questão fundamental de como tornar a cidade de hoje um lugar de felicidade”.
No Olhar das Crianças a que assisti, houve uma introdução de Tonnuci, arquitecto italiano e comentários do escritor Manuel António Pina; o olhar final foi de Agustina Bessa-Luís. Nesse ano, foram realizadas coisas importantes que melhoraram a cidade em muitos aspectos. Por exemplo, foi feito o arranjo de ruas, estreitando-as e alargando os passeios com a ideia de que as pessoas podiam voltar ao centro, circular a pé na Baixa e mesmo vir à Baixa a pé, vivendo pausadamente, humanizando a cidade.
Interessei-me muito por este assunto, porque sei até que ponto as crianças gostam de estar e de brincar na rua. E recordo o privilégio que era poder fazê-lo. A cidade era o lugar a que pertencíamos e onde tínhamos o direito de estar, um lugar com história em que nos sentíamos próximos e seguros.
Recordo estar de um lado da rua, pelo Carnaval, segurando uma ponta do fio como Ariadne, enquanto do outro lado, outra miúda segurava a outra ponta. E quando um carro suficientemente bonito passava largávamos o fio que era levado a esvoaçar pelo carro. E ficávamo-nos a ver a beleza daquilo. Havia carros que levavam várias serpentinas de cores diferentes, porque passavam devagar e eram merecedores de atenção. Agora, na cidade, sentimo-nos distantes uns dos outros mesmo quando nos acotovelamos, e diferentes, estrangeiros. As ruas não são espaços participados: temos telemóveis e caminhamos por esses espaços discutindo com seres invisíveis, e o que vemos são grandes cartazes coloridos, e carros e luzes verdes e vermelhas e ditas esculturas imensas e altifalantes e tantas coisas que chamam a nossa atenção - só não nos interessamos pelos outros, pelos vizinhos. Os que estão ali e nos sorriem. Os que devem atravessar as ruas sem pressa e os que apreciam não ouvir tanto ruído nem ser de tal modo assediados por importunos que não temem a justiça. Que não vêem razão para temer a justiça. Caminhamos com dificuldade num espaço totalmente profano, não nos apercebemos de que o espaço sagrado está lá: suave, tranquilo e propício a uma elevação espiritual.
Como podemos pensar uma cidade para pessoas, ter um papel útil nela, usá-la para a nossa cultura?
Perguntaremos às crianças como gostariam elas de ver a sua cidade, sim, perguntaremos às crianças. Talvez pudéssemos voltar nós à infância. Ver com olhos limpos.
Ou vamos construir a cidade dentro de casa e então…?
A sociedade Porto Cidade da Cultura fez muito para que voltássemos a gostar da nossa cidade no aspecto urbanístico, arquitectónico, cultural. E estamos gratos. Mas precisamos muito mais, precisamos trabalhar todos muito mais para que ela seja uma cidade boa e segura para as nossas crianças, se o for para elas é também para nós, para que voltemos a dar-lhes o gosto de descobrirem o que não sabem, de gozarem a rua e viverem uns com os outros. Em paz. Será isto uma das coisas que põe em causa o essencial da democracia? O que andamos para aqui a fazer?
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