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Hoje o dia começou para mim com uma surpresa inteira, desconcertante. Quando, como é hábito, me aproximei da janela, apurei que não existia nada do que vejo habitualmente no exterior a esta hora da manhã.
Nada.
A um centímetro do vidro, tinham pendurado uma cortina espessa, cinzenta e com bom cair.
Fiquei logo a pensar com quem ia protestar, contra quem, pois não via que houvesse o direito de qualquer um me tapar o mundo. E claro, veio-me tudo à ideia, tipo “estamos a viver em democracia”, “tenho o direito de olhar e ver, e de exigir, e de protestar…” Tudo direitos que me assistem. E também me assiste, parece, o direito de ultrajar os que poderiam ser responsáveis por me retirarem aquilo a que julgo ter direito.
Meu Deus, que nomes eu posso chamar-lhes, que nomes… que me tinham ensinado a não usar, nem sequer a deixar permanecer no arquivo da minha memória. Que fabulosa vantagem eu tenho, agora que vivo numa sociedade democrática: tenho a liberdade de chamar nomes “feios”, vis e desengonçados a todo o mundo. Nomes que magoam como facas, títulos que são instrumentos de tortura.
Tenho o direito de me indignar, de gesticular de forma mais ou menos patética, de prestar uma atenção impiedosa e crítica aos mínimos gestos dos outros, sobretudo dos que me governam, e até de fazer com volúpia discursos entediantes e palavrosos sobre as suas atitudes não encapuçadas.
Ah, essa energia contagiante de palavras!
E enquanto pensava a quem me havia de dirigir para exercer os meus direitos, a que tinha direito, o véu cinzento que tinha visto bem cedo quase encostado à minha janela foi-se clareando e afinando. Talvez fosse apenas uma simulação ou dissimulação ou um pó cinzento de origem duvidosa…
Saí para observar. Nos primeiros momentos e passos, não enxergava sequer a Ponte da Arrábida, não estava lá, seguramente. Nem o rio, claro. Nem outras coisas que aprecio: a passarada, os pequenos barcos, as copas das árvores, os fios luminosos, os ecos indecisos…
Porém, quando voltei, um tanto ou quanto desiludida, reparei num começo de arco supostamente da minha ponte preferida e vizinha, o começo do arco do lado da cidade, não o arco completo.
E, por alguma razão, comecei a tranquilizar-me. Afinal, havia o chão que eu pisava e o invisível ar que respirava. Eram braçados de indícios?
Talvez tudo não fosse tão cruel assim, possivelmente o dia não vai ser ruim como julgara.
Quiçá as coisas boas regressem com luz e musicalidade, mais soltas. Pelo menos, o sol.
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