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SURPRESA

por Zilda Cardoso, em 09.03.15

Hoje o dia começou para mim com uma surpresa inteira, desconcertante. Quando, como é hábito, me aproximei da janela, apurei que não existia nada do que vejo habitualmente no exterior a esta hora da manhã.

Nada.

A um centímetro do vidro, tinham pendurado uma cortina espessa, cinzenta e com bom cair.

Fiquei logo a pensar com quem ia protestar, contra quem, pois não via que houvesse o direito de qualquer um me tapar o mundo. E claro, veio-me tudo à ideia, tipo “estamos a viver em democracia”, “tenho o direito de olhar e ver, e de exigir, e de protestar…” Tudo direitos que me assistem. E também me assiste, parece, o direito de ultrajar os que poderiam ser responsáveis por me retirarem aquilo a que julgo ter direito.

Meu Deus, que nomes eu posso chamar-lhes, que nomes… que me tinham ensinado a não usar, nem sequer a deixar permanecer no arquivo da minha memória. Que fabulosa vantagem eu tenho, agora que vivo numa sociedade democrática: tenho a liberdade de chamar nomes “feios”, vis e desengonçados a todo o mundo. Nomes que magoam como facas, títulos que são instrumentos de tortura.

Tenho o direito de me indignar, de gesticular de forma mais ou menos patética, de prestar uma atenção impiedosa e crítica aos mínimos gestos dos outros, sobretudo dos que me governam, e até de fazer com volúpia discursos entediantes e palavrosos sobre as suas atitudes não encapuçadas.

Ah, essa energia contagiante de palavras!

E enquanto pensava a quem me havia de dirigir para exercer os meus direitos, a que tinha direito, o véu cinzento que tinha visto bem cedo quase encostado à minha janela foi-se clareando e afinando. Talvez fosse apenas uma simulação ou dissimulação ou um pó cinzento de origem duvidosa…

Saí para observar. Nos primeiros momentos e passos, não enxergava sequer a Ponte da Arrábida, não estava lá, seguramente. Nem o rio, claro. Nem outras coisas que aprecio: a passarada, os pequenos barcos, as copas das árvores, os fios luminosos, os ecos indecisos…

Porém, quando voltei, um tanto ou quanto desiludida, reparei num começo de arco supostamente da minha ponte preferida e vizinha, o começo do arco do lado da cidade, não o arco completo.

E, por alguma razão, comecei a tranquilizar-me. Afinal, havia o chão que eu pisava e o invisível ar que respirava. Eram braçados de indícios?

Talvez tudo não fosse tão cruel assim, possivelmente o dia não vai ser ruim como julgara.

Quiçá as coisas boas regressem com luz e musicalidade, mais soltas. Pelo menos, o sol.

008.JPG

 

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publicado às 13:44


2 comentários

De aline a 22.03.2015 às 01:41

Um sorriso de boa noite :) Já disse lhe e repito, se chegar a sua idade, quero ser assim. :) um beijinho ate quarta.

De Zilda Cardoso a 25.04.2015 às 19:52

Assim... como? Optimista? Realista? Defensora dos seus direitos... como esse... de ver o mundo através do vidro?Pois, hoje 25 de Abril, apeteceu-me de novo falar em direitos e em obrigações, em democracia, em exigências.
Mas tivemos chuva, hoje, e não sei contra quem protestar.

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