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pessoas dissimuladas

por Zilda Cardoso, em 28.05.14

O livro que estou a ler de Agustina Bessa-Luís fez-me lembrar o que presenciei de vários modos e em várias ocasiões em Álvaro Siza: desenha continuamente em reuniões de trabalho de arquitectos, não em qualquer papel, mas em impossíveis circunstâncias. E os desenhos são interessantes e têm sido publicados em livro ou foram motivo de exposições.

O chamado Caderno de Significados de Agustina foi o resultado do agrupamento de diversos textos soltos sobre os mais variados temas, escritos em qualquer papel, ao acaso do lugar onde se encontrava: em debates muito intelectuais ou em férias, em qualquer momento desadequado. São pensamentos que tinha de registar enquanto estavam a ser engendrados, ou enquanto vivos na sua memória.

Tenho-me deliciado com eles.

Também escrevo em sítios inadmissíveis, não confio na minha memória, e guardo em cestos e arcas ou dentro de livros na estante com receio de perder ideias que me aparecem e que outros um dia vão achar geniais. Geniais!

Agora que pequenas coisas começam a ocupar demasiado espaço na minha cabeça... o que acontece? Quero dizer, por fora, a cabeça mantém as mesmas dimensões de outro tempo. Por dentro… não. E interrogo-me sobre o que terá ocupado o espaço que antes era passível de ser preenchido com objectos de todo o tamanho, cor e forma. Os neurónios a atrofiar-se, as conexões a desistirem deixariam mais espaço livre. Para quê?

Fala-se de conexões e eu fico ligeiramente irritada com as conexões e as correlações entre neurónios. Neurónios transmitem informação para outros neurónios no cérebro; há-os em abundância em qualquer idade, pode haver, mas as conexões que estabelecem essas relações desaparecem quando não são usadas. É nessa ocasião que surgem os nossos discursos sem nexo.

Que história mal contada! Mas que história tão mal contada! Por que não dizem simplesmente que ser velho é isso: é não estabelecer novas conexões entre os neurónios?

E que tem de mal ser velho? Não estava previsto? As pessoas são tão dissimuladas!

Redescobri esta palavra recentemente num texto de Agustina, tinha-me esquecido dela que era para usar com frequência. As pessoas são dissimuladas. Quando encontro uma que não é, fico muito feliz. Mas talvez haja menos pessoas dissimuladas do que antigamente quando não havia tanta liberdade de dizer e de fazer.

Agora não é necessário ser dissimulado. É uma pena. Gosto da palavra que é curiosa e divertida e… se gosto de pessoas dissimuladas? Posso não gostar?

Não sei se vale a pena não gostar. É provável que o próprio conceito seja útil e politicamente correcto. Se eu disser que determinada criatura é dissimulada, deixam de gostar dela? Eu não deixo. Além de que um indivíduo dissimulado aprende a ser mais inteligente.

“Tudo é outra coisa”, diz ainda Agustina. Tem razão. Sei que me engano muitas vezes quanto ao que vejo, quanto ao que penso, quanto ao que sei. Por que se não é assim, se alguma coisa está mal, é porque eu estou a ver mal.

Pode ser sempre outra coisa.

 

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publicado às 11:09


2 comentários

De Teresa Hoffbauer a 29.05.2014 às 11:25

É sempre um prazer entrar aqui, mas quando entramos e encontramos uma Agustina Bessa-Luís, um Álvaro Siza e um delicioso texto sobre neurónios envelhecidos, então, o prazer é triplo.

Saudações de Düsseldorf!

De Zilda Cardoso a 29.05.2014 às 15:29

Que prazer voltar a lê-la! Saber de si, saber que está aí!
Muito obrigada.

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