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pensamentos canibais

por Zilda Cardoso, em 03.02.14

Faço-me boa companhia, as mais das vezes. A escrita ocupa-me, porque o meu trabalho não é transcrever o que foi escrito por outrem. É transformar em escrito o que é por mim pensado.

Este pensado, este pensar é o que verdadeiramente me ocupa. E me faz companhia.

E, de certo modo, o pensado e o escrito estão intimamente ligados - não há escrita original sem pensamento conquanto haja pensamento sem escrita.

O pensado-e-escrito pode chegar-me de maneiras distintas. Para mim, há duas formas de escrever: uma é servir-me dos pensamentos que me ocorreram genuinamente e logo antes do acto da escrita.

Que são de estrutura muito frágil e se afundam facilmente. Qualquer mínima interrupção ou ruído pode fazê-los desaparecer da minha mente para sempre. 

Mas eu persigo-os, sofrendo. Como se persegue uma ilusão.

Por isso, sinto o drama de não contribuir para o bem da humanidade (!) com um pensamento fulgurante, original e redentor apenas por que o deixei escapar com negligência. Que me tinha sido oferecido e não aproveitei.

E fico triste sabendo que não há nada mais triste do que perder um texto, nada. Nesse então, acho-me francamente só…

E perdida do sentido, de todo o sentido.

Mas pode acontecer que consiga escrevê-los, os pensamentos prodigiosos, e sentir-me espécie de mensageira, por muitos momentos, afortunada e em boa companhia, concentrada a ponto de não deixar escapar o sentido. Ponderando ainda que as palavras podem ser aquelas ou outras.

A outra forma é pensar num tema e aproveitar sobretudo os conhecimentos, as emoções, a memória daquilo a que o posso ligar e passar isso directamente para o papel. Quero dizer, sem aquela soberba e cúmplice matriz de que falei, apenas o tema a orientar-me.

Parto do pressuposto de que o tema que preferi é interessante e baseio-me em pensamentos que estão enraizados em mim, confusos e desordenados. E que organizo da maneira que sei, com o olhar posto no que quero atingir.

A diferença entre uma forma e a outra é que no primeiro caso transformo em escrita legível o que foi inspiração de momento, que elaborei simplesmente tecendo os vários elementos próprios da minha estrutura de pensamento antes de utilizar algum meio prático de gravação. E que me arrisco a perder tudo se não o fizer rapidamente.

O que pretendo é não deixar que se apague o que veio não sei de onde para mim como uma luz. Não o experimento como meu, mas como depositária que sou de um bem ou de uma revelação que devo estar apta a transmitir a outros.

Tanto para registar o que me ocorre desta forma como o que escolho e teço com o meu corpo e alguma técnica, como ainda aquilo em que faço interpenetrar uns pensamentos e os outros das duas origens, elaborando o texto, tenho de ganhar distância. Não devo estar envolvida de muito perto no que conto.

E escrevo na presunção de que o que conto e de que falo, seja o que for e qualquer que seja a sua origem, poderá interessar quem o ler. Ou não, dependendo mais da forma como está concebido e inscrito do que do acontecimento.

 

 

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publicado às 20:15


11 comentários

De Isabel Maia Jácome a 03.02.2014 às 22:21

Como é interessante o que diz... e como há realmente tantas formas de escrever... ou que levam a escrever... e tantas outras mais que se prendem com os mil momentos que nos acontecem e em que as emoções variam e se entrecruzam e se interceptam ou fundem.. mil formas, sim... dando origem à possibilidade de tanto!...
... mas o que me entristece é que realmente escrever exige tempo e o tempo do momento... que em mim, nestes últimos tempos, anos mesmo, me escorrem entre dedos.
Só posso dizer a mim mesma que desejo recuperar, dizê-lo com força e convicção, com entusiasmo e desejoso... agarrando então o que possa... fixando, retendo... mas um fixar e reter engraçados... que nada têm de prisão...
...são na maioria das vezes momentos de franca expansão e liberdade. De franco encontro connosco próprios e com o que nos cerca...
... de profunda descoberta!!!... e pode ser fantástico!!!...
Obrigada, Zilda!

De Zilda Cardoso a 04.02.2014 às 08:25

Escrevi este texto a pensar em si, Isabel.
Importam as sensações e há as técnicas. O que acontece muitas vezes com quem começa a escrever é preocupar-se demasiado, a meu ver, com a técnica. Ou antes com o emprego de palavras difíceis para mostrar cultura, conhecimentos... E resulta artificial. E não tem graça. Acho que devíamos todos pensar mais naquilo a que estou a chamar graça.
Um abraço.

De Isabel Maia Jácome a 04.02.2014 às 22:23

... que bom Zilda podermos partilhar o que nos vai na alma... e sim, concordo consigo, sempre que possível, da forma mais simples!... mesmo que, precisamente para isso exija o tempo de correcção para que possa ser isso mesmo... simples, perceptível e quem sabe, dessa forma, mais bonito, agradável, perceptível, partilhável.
Quem me dera consegui-lo... é tão bom saber e poder escrever!!!...
Abraço bem forte e sempre grato,
Isabel

De Cidália Carvalho a 03.02.2014 às 23:10

Faz companhia a si, a mim e a tantos e muitos que a lêem, de certo com muito prazer porque transforma , com mestria, em escrito aquilo que pensa, muitas vezes aquilo que nós também pensamos mas que não sabemos exprimir. Por isso, não é presunção, acreditar que o que escreve nos interessa, é facto. Um beijinho e fique bem!

De Zilda Cardoso a 04.02.2014 às 08:18

Como é agradável ouvi-la sempre, Cidália. Porque eu ouço-a!
E, claro, fico feliz por pensar, por saber que o que escrevo lhe interessa e a tanta gente, como diz.
Espero que esteja bem.
OBG.

De Miguel Vieira a 05.02.2014 às 00:14

Interessante reflexão sobre o seu processo de escrita.

Gostei particularmente do seguinte parágrafo:
"O que pretendo é não deixar que se apague o que veio não sei de onde para mim como uma luz. Não o experimento como meu, mas como depositária que sou de um bem ou de uma revelação que devo estar apta a transmitir a outros."

Wayne Dyer também se sente intermediário na transmissão de uma mensagem que é dirigida aos seus pares. No caso dele, a sua origem é a fonte original de toda a criação.

Em qualquer uma das 2 vias de que fala, parece-me que o escritor tem de se aprimorar no aprofundamento do tema que trata, procurando ultrapassar-se e atingir uma visão lúcida e inteligente. No fim, sai beneficiado, pois esse processo também o aperfeiçoou a ele. É essa a sua gratificação.

O que espero, Zilda, é que não perca muitos textos e pensamentos, é uma pena. E que, quando não puder evitar essa perda, encontre outros em substituição, tão bons ou melhores. Um beijo, Zé Miguel

De Zilda Cardoso a 05.02.2014 às 09:11

Às vezes, é difícil, Zé Miguel. É uma dádiva e as dádivas são valiosas por vários motivos, entre eles, porque são raras, acontecem raramente.
Muito bem, quanto ao autor de que falas e que não conheço. Há sempre uma elaboração depois da revelação. Qualquer investigação e reflexão leva ao aprofundamento do tema e a uma possível verdade ou a uma aproximação. Por isso, há todo o interesse em elaborar o que se escreve tanto no aspecto do sentido como no da formulação. Também pela outra razão: é que deverá interessar o leitor para ter algum efeito que não seja em nós próprios, quero dizer, em quem escreve.

De Marcolino Duarte Osorio a 05.02.2014 às 02:22

E li-a, na presunção de que o que conta e de que fala, seja o que for, qualquer que seja a sua origem, interessa sempre quem a lê, porque vem de dentro de si, bem do fundo da sua verdade, como grande ser humano que sempre foi!
Boa semana!

De Zilda Cardoso a 05.02.2014 às 08:54

Sou sempre tocada pelo que me diz, muito obrigada.

De Vicente a 08.02.2014 às 15:29

Pois ora viva a Zilda. Este seu texto está muito bem escrito e contém uma série de ideias para quem se dedica à escrita.

De Vicente a 16.02.2014 às 22:27

Deve existir algo estranhamente sagrado no sal.
Encontra-se nas lágrimas e no mar.

Khalil Gibran

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