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OBRA ABERTA: não serve qualquer interpretação

por Zilda Cardoso, em 21.09.14

 

 

Depois do grande pequeno-almoço, pelas 9 da manhã, fui conhecer a aldeia que me tinha parecido interessante, numa primeira visita rápida, antes que o sol se excedesse em brilho e me confundisse.

Todavia aqui é sempre brilhante de sobra e, verdadeiramente, ignoro qual a hora mais propícia a um passeio tranquilo.

Arrisquei com a luz tão forte apesar das pequenas nuvens a suavizar, e a proeza provocou-me aquela malfadada enxaqueca.

De modo que regressei rapidamente, já com o comprimido na mão e hemicrania (bonito nome!) sobre os olhos, mais para o esquerdo. Engoli-o com água fresca mal cheguei ao escuro do quarto, e deitei-me.

Daí a pouco, estava melhor.

Já sentada na cadeira… ela voltou, a tal. Estou mesmo confusa: tomo outro comprimido, não devo? Fecho os olhos e espero por melhores horas, se bem que nem a paciência nem a esperança sejam o meu forte.

Devo esforçar-me e recordar os ensinamentos budistas que dizem ser a paciência fundamental - para um bom relacionamento, para se ser feliz… E que nos devemos esforçar, porque  "without your own effort, it is impossible for blessings to come”.

Vou tentar ler um texto mais ligeiro do que os meus preferidos e que me acompanham para todo o lado como As confissões de um jovem escritor. É de Umberto Eco escrito quando tinha mais de 70 anos e não havia muitos que se tinha estreado como escritor.

Conhecia-o bem como linguista, semiólogo, filósofo da linguagem com uma enorme reputação a defender já que os seus livros científicos eram estudados com todas as minúcias nas universidades, nos cursos de linguística e de teoria da literatura.

Os livros foram um enorme sucesso de vendas e o filme (ou os filmes) realizado a partir dos livros grandíssimo sucesso de bilheteira. O filósofo ganhou uma fama extraordinária como escritor.

O que é interessante neste livro é que ele explica o seu processo de escrita, definindo o que distingue para si a escrita criativa da científica. Diz que a criativa é aquela em que o autor procura “representar a vida com toda a sua incoerência” e a científica aquela que “procura resolver um problema específico”.

No entanto, a escrita criativa de U.E. baseia-se em estudo e pesquisa, o autor como um deus cria um mundo que “tem que ser exacto para nos podermos movimentar nele com segurança”.

Por outro lado, "preciso de desorientar o meu leitor ao mesmo tempo que mantenho as minhas ideias muito claras”, diz U. Eco a propósito de livros em que há um enigma a resolver como num policial que é o que prefere redigir.

Demora anos a compor os romances e baseia-se nas suas notas, em ideias recolhidas, em imagens, nas  palavras que escolheu. Prefere os temas que já estudou possivelmente com diferente intenção, sobre os quais acumulou “recordações, nostalgias e curiosidades”. Serve-se de banda desenhada, de gravações, de revistas, de jornais.

O processo não se inicia sempre do mesmo modo: pode ter tido uma ideia seminal, como lhe chama, ou uma imagem seminal e pode acontecer uma epifania, na sequência dela. Considera que a inspiração entra muito pouco no seu trabalho. Recolhe documentos, visita locais, descreve os lugares que visita, desenha mapas, observa a configuração de edifícios e talvez de um navio e até pode sentir a necessidade de desenhar o rosto dos personagens e desenha-o.

Então concentra-se na preparação da narrativa, pensa no estilo adequado ao tema, nas palavras certas, e nas restrições que o tema lhe impõe quanto à época em que a história se passa, ao local, às particularidades da língua e aos públicos a quem se dirige e cuja boa vontade e inteligência respeita.

E dá uma forma ao texto que sugere uma interpretação ou que a provoca e que não será única (não tem que dar explicações sobre o texto): ele é “um dispositivo criado para provocar interpretações”.

Evidentemente, fiquei encantada com todas estas elucidações e concluo com alguma surpresa que Umberto Eco trata com todo o rigor científico os seus temas criativos. Do que resultam romances extraordinariamente interessantes que, se a acção não tem a ver com a realidade, podia muito bem ter.

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publicado às 10:43


7 comentários

De Vicente a 21.09.2014 às 21:36

Muito interessante. Bendita migraine...

De Zilda Cardoso a 22.09.2014 às 13:06

Ainda bem que interessou a alguém. Eu estou tão de acordo com o Eco... Escrever sem verificar se é verosímil só porque parece bonito ou curioso ou... outra coisa qualquer... não sei se vale a pena. Para mim, adoro o tipo de investigação que ele faz, mas qualquer narrativa, mesmo que se passe na nossa época pressupõe uma data de investigação seja genealógica seja histórica, geográfica, sociológica, linguística... um mundo. Mas é isso que vale a pena, porque, sabe, ainda fica muito para a imaginação. E tem-se a sensação de estar a trabalhar... o que é uma forma de ser aceite pela sociedade e por nós próprios. Estamos assim formatados, o esforço e o que daí resulta será o que nos justifica.

De Vicente a 22.09.2014 às 20:25

Sim e não estou de acordo consigo. Em obras de maior responsabilidade é essencial a pesquisa, por uma questão de rigor e de seriedade.

Quando se conta um conto, bastará talvez uma sólida cultura geral e um rememorar de factos para "não pôr relógios de pulso na série do Downton Abbey"!

De resto eu divido em dois planos alguns projectos que tenho para escrever:

1. invenção total o que facilita a escrita pois só terá que obedecer a uma lógica de organização mínima de ideias, pessoas e factos. É a pura liberdade de cenários de vida, de comportamentos sem fazer directamente mal a ninguém.

2. a personificação indirecta de alguém cuja identidade não quero desvendar, mas cuja biografia conheço perfeitamente para a poder descrever, cabendo-me o engenho e a arte de tudo dizer sem nada mostrar.

Voilà!

De Zilda Cardoso a 23.09.2014 às 17:18

Há erros que dificilmente se perdoam e nem sequer são como esse do relógio: são erros para resolver os quais seria preciso uma grande cultura geral.
Quando diz invenção total refere-se a acontecimentos que na realidade não ocorreram. Mas nada é invenção total, não somos deuses, precisamos de muito material de referência e material concreto para edificar seja o que for. Por isso, é melhor saber o mais possível sobre o tema.
Porém, a não ser que se esteja a escrever História ou biografias, não devemos querer desvendar a história da vida seja de quem for. Qualquer personagem de um autor talentoso tem em si características de diversas pessoas que o seu criador conhece e que compôs. Quando fala de si próprio...
A Agustina... não me canso dela, (vai haver um congresso internacional nos dias 14 e 15 de Outubro na Gulbenkian sobre ética e política na sua obra) citava Kierkegaard:"Quando alguém escreve acerca dos acontecimentos da sua própria vida, é regra de delicadeza não dizer nunca a verdade, mas reservá-la para si e permitir só que se reflita de diversos ângulos".

De Vicente a 27.09.2014 às 10:39

Pois eu continuo na minha, quando se cria do nada um romance, uma novela, poesia a composição do texto flui naturalmente.

As ideias organizam-se a partir do cerebelo que é aonde estão arquivados os nossos conhecimentos como que numa biblioteca activa e selectiva.

Numa biografia, num relato de um acontecimento mesmo que procedamos a uma pesquisa de fontes atenta e demorada, acaba sempre por ser influenciada pela nossa visão dos acontecimentos e é isso, no meu entender, que imprime carácter a uma obra.

Food for thought!

De Zilda Cardoso a 28.09.2014 às 08:47

Não vejo nenhum desacordo no que afirmamos. Excepto quando diz... quando criamos do nada... e depois fala dos conhecimentos arquivados no cerebelo... na visão do mundo de cada um etc.
Isso pode ser muitas coisas formadas ao longo da vida graças ao nosso discernimento, capacidade de observação, sensibilidade... É o que faz a diferença.

Detesto palavras. A ambiguidade que está na sua natureza faz com que nos desentendamos. É uma velha questão.
Um nada pode estar carregado de tudo, de muito ou de muito pouco.
Quando quiser, envie-me um conto que tenha partido do nada.
Obg.

De Vicente a 28.09.2014 às 12:58

Olá Zilda, pois parece-me que estamos efectivamente de acordo.

Vou procurar um conto dos meus feito do nada e enviar-lhe.

Se tiver paciência um dia destes ao passar numa livraria folheie o livro "Como criar um novo EU" de que gostei muito, pois independentemente de falar do método quântico - o futuro, senão já o presente - traz informações deslumbrantes sobre o nosso cérebro, mesmo sobre aqueles que o têm de galinha...ahahah

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