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Espreitar um desejo

por Zilda Cardoso, em 09.02.15
Papel de Parede - Vitória-régia na Amazônia
(bela imagem da internet que agradeço)

Uma das viagens mais interessantes que fiz, há uma porção de anos, ficou na minha lembrança como uma radicalmente nova experiência de vida. Foi à Amazónia.

Muito nova experiência para mim, mas no fundo fui muito protegida como turista, se bem que nem qualquer turista queira arriscar-se a fazer uma experiência semelhante.

Fomos até Manaus de avião e depois da carro e de barco até à ilha de Silves onde se situava uma pousada confortável, redonda, no meio de uma planície. Da varanda do quarto, via o rio Urubu, afluente do Amazonas e o lago Canaçais – água, água, água e árvores muito verdes. E toda a fulgurância da sua copiosa frescura.

Tivemos alguns dias cheios de acontecimentos emocionantes, mas previstos com mínimas excepções, e muito sumo de frutas para nós exóticas que nos eram servidas frescas a cada passo, durante o dia.

Extraprograma turístico, todas as manhãs havia uma saudação especial para os raríssimos visitantes de um pássaro que nunca chegamos a ver. Muito depois de regressar a casa, ouvia aquele canto matinal acolhedor e tão apelativo, ouvi-o durante anos.

A primeira excursão foi uma pescaria à linha no grande rio, num barco minúsculo com dois guias ou piloteiros que nos aparelharam o isco e nos colocaram nas mãos a cana preparada. O isco eram pedaços de carne muito ensanguentada e, é claro, eu pesquei facilmente umas horrorosas piranhas que não quis provar embora nessa tarde tivessem sido cozinhadas para nós na pousada. Aquelas piranhas e todas as piranhas estão para nós carregadas de significados acabrunhantes, sentir-me-ia meio-antropófaga.

Passeamos na floresta seguindo sempre os guias que nos ensinaram a preparar camas frescas e agradáveis de folhas entrançadas para descansar de emoções, e a usar os liames das árvores para ir de um lugar para outro ou de uma árvore para outra à Tarzan.

As árvores eram muito altas e esguias, as copas só se enxergavam virando o olhar para o céu lá bem alto e muito pouco se via o céu. De modo que mal penetramos na floresta, senti o ar húmido e quente e parecia-me não poder respirar.

Fiquei esmagada por tanta grandeza, mas ao apreciar o delicioso sumo e as iguarias do piquenique que os guias levavam, regalada nas camas entrançadas, voltei ao meu mundo.

Ouvi os gritos dos macacos selvagens no alto das árvores e decidimos abandonar a floresta não sem um susto muito apimentador. Vi o olhar de pânico de um dos guias e perguntei o que tinha acontecido. Ele respondeu que eu quase pisara uma cobra escondida sob a folhagem acastanhada. É evidente que não me tinha apercebido e quando soube já não era tempo de me perturbar.

Passeamos de lancha pelo rio, junto das suas belíssimas margens e não nos demos conta dos cortiços de abelhas ou de vespas pendurados nos ramos sobre a água. Toquei nelas inadvertidamente ao passar e elas aproveitaram para se atirarem como loucas à minha cabeça, enredaram-se nos cabelos compridos e lançaram o pânico no grupo. Podia ter terminado em tragédia, mas estávamos protegidos pelos deuses.

Os guias pareciam assustar-se muito, mas arriscavam e levavam-nos a arriscar: era o nosso impulso para o desconhecido que eles estavam encarregados de levemente estimular.

O safari aos jacarés foi o cume destes dias de aventura. Teve que ser escolhida uma noite escura como breu e silenciosa, não serve qualquer noite. E foi brilhante: o barco era uma casquinha, superlotado com dois guias e nós dois. Demoraram a aparecer aqueles pares de olhos enormes, letárgicos, dourados e brilhantes. Os guias viram-nos e com ajuda de uma corda paralisaram-nos para os fotografarmos. Depois largaram-nos e nós ficámos em silêncio a pensar na cena que podia ser funesta, mais uma vez. Era questão de o jacaré estar maldisposto. Ou ouvir algum ruido inquietante.

Não tive medo nem consciência do perigo. O que melhor recordo são as pedras douradas, aqueles olhos reluzentes, enormes e decerto estupefactos. Ou em êxtase. Podiam ter 15 metros de comprimento e bastava-lhes um certo movimento da cauda para nos virarem o barco e irmos rapidamente à água. E lhes servirmos de refeição semanal.

Os lagos são um esplendor com as victorias regias enormes que suportam 40 quilos sobre elas, se bem distribuído o peso pela sua superfície que pode atingir 2,5 metros de diâmetro. As flores podem ser brancas, ou rosa, lilases, roxa ou amarelas, abrem e fecham a certas horas e são uma espécie de lírios ou nenúfares de água, muito perfumados, típicos de águas pouco profundas.

Uma desilusão para mim foi não ver pássaros, vi muito poucos entre as mil e novecentas espécies que dizem existir por ali. Soube que não era boa época para os observar. Teria que voltar na Primavera, havia inúmeras excursões a partir da Europa na época da nidificação exclusivamente para ver e fotografar os nomeados pássaros. Então era um deslumbramento. Calculo bem que sim, que tolice a minha, não tinha pensado nisso. Na verdade, tinha ido mais pelos pássaros, para desmitificar o sítio.

Porém, vejam, visitámos a ilha dos Pássaros, convivemos com nativos sobretudo com crianças que nos rodearam, pedindo rebuçados. Havia onde os comprar porque já era tradição oferecê-los aos miúdos. E manuseámos e adquirimos belas peças de artesanato de ornamento que me deixaram enfeitiçada – colares, pentes e pinturas em casca de árvore realizadas com tintas naturais.

E, tal como noutros lugares, contemplamos da nossa varanda, barquinhos compridos que passavam para o mercado com legumes maravilhosamente coloridos e frescos, dispostos no fundo do barco como obra de arte.

Perseguimos ilusões, espreitamos desejos. Regressamos muito outros.

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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publicado às 12:57


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