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DIA INTENSO

por Zilda Cardoso, em 21.05.14

Foi um dia intenso, ontem.

Logo pela manhã, comecei a fazer telefonemas marcantes, dos que se vinham amontoando desde há dias. São coisas que não apetecem, mas fui resolvendo e sentindo alívio e contentamento. Coisas complicadas que envolvem papelada, e posteriores idas a repartições, a secções e a multi-bancos. E nariz enfiado nos dossiers, e falar a este e àquela, cada um faculta a sua sentença, ou então não está ninguém do outro lado do fio à hora que é suposto estar…

Detesto ter que concluir isto.

Ainda antes dos telefonemas, sentenciei eu largamente em resposta a mensagens do computador que estavam de anteontem ou da madrugada de ontem.

Depois saí, falei com uma assistente social de muita sabedoria, voltei com novos papéis para preencher, saí de novo. Regressei. Desta vez, estacionei o carro num parque, dei conta de que a minha via verde não funcionava, paguei aquele negócio na máquina. E fui ao médico e à farmácia.

Para meu regalo, o chá de camomila no Península – um centro comercial que merece melhor sorte do que tem - estava uma delícia depois de eu ter apanhado aquelas gotas geladas que vinham do alto sobre a minha roupa de Verão. O lugar é confortável de mais para ser comercial: sofás bons, mesas e bancos atraentes, luz e música suave e no volume certo para não adormecer, que não convém; e pequenos ruídos que não deixam ninguém sentir-se só. Por isso, é bom ficar algum tempo ali com muitas ilusões. Oferece tudo para estarmos bem, não deve ser rentável, têm de dar-lhe uma outra função mais de acordo com as necessidades e as suas capacidades.

Reparei num grupo de cabeças brancas todas voltadas para um centro, talvez tivessem estado toda a tarde em cavaqueira tranquila e sem gastos, pois juntaram várias mesas e muitas cadeiras e puseram a conversa em dia, rindo e cantando. É um lugar privilegiado para estes eventos e outros de maior estatura. Quando muitas pessoas descobrirem como é bom estar lá e indispensável um sítio como este nesta zona da cidade, o Península vai ser finalmente um sucesso.

Segui pela rua do Campo Alegre, passei perto do Gólgota, lembrei-me da frescura de linguagem do último livro de Agustina Bessa-Luís com ilustrações de Mónica Baldaque. É o Colar de Flores Bravias, tem um aspecto invulgar, uma dimensão que favorece as imagens e uma linguagem de adolescente muito crescida e sábia. Linguagem de adolescente… Agustina? “Nasci adulta…” É um escrito da juventude (o que parece tão original nela que julgávamos não ter tido juventude) e conta “recordações daquelas férias que eram como um colar de flores bravias, recordações que murchavam como as flores do colar”. Mas delas ainda ficava o “perfume seco das coisas sem fim a que a gente chama saudade”. Vale a pena ler e ver este colar de flores bravias que se converte em tocantes cores bravias nas páginas centrais do livro.

Adoro recordações de infância, férias no campo e flores e cores silvestres. E adoro os pensamentos de Agustina. Está ali naquele livro, o começo de quase tudo o que tem sido a sua vida e o seu pensamento de escritora.

De um momento para o outro, caiu sobre mim e a cidade uma luz estranha e trágica para a qual eu não encontrava justificação, na minha ignorância. Ficaria noite nos próximos minutos às cinco da tarde? Ou uma chuva torrencial se abateria sobre esta cena, uma chuva arroxeada como nunca se viu?

Continuei devagar e a medo esperando a tormenta, pensando na Grécia e nos seus heróis, e a interrogar-me sobre se reconheceria o Adamastor e os nossos heróis, se os visse. Optimista, pensei que sim e que o monstro estava descrito nos Lusíadas com tanto entusiasmo e saber que era impossível não dar logo por ele.

Mas tudo vulgar, de Lineu.

Por falta de acontecimentos inusitados, eu que estava circunstancialmente feliz algum tempo antes, aquando dos sucessos confirmados em resposta aos meus esforços em irritantes telefonemas e mensagens… estava agora desolada.

Caíram mais uns pingos de chuva saltitada e transparente, não índigo, não cor de tragédia anil, como eu esperava depois daquela ameaça.

Cheia de soluções, estava. Mas que soluções? É tudo passageiro, fugaz, temporário, transitório.

Não aconteceu nada.

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publicado às 18:06


4 comentários

De Vicente a 22.05.2014 às 12:32

Talvez precisemos voltar a essa arte tão humana que é a lentidão. Os nossos estilos de vida parecem irremediavelmente contaminados por uma pressão que não dominamos; não há tempo a perder; queremos alcançar as metas o mais rapidamente que formos capazes; os processos desgastam-nos, as perguntas atrasam-nos, os sentimentos são um puro desperdício: dizem-nos que temos de valorizar resultados, apenas resultados.

À conta disso, os ritmos de atividade tornam-se impiedosamente inaturais. Cada projeto que nos propõem é sempre mais absorvente e tem a ambição de sobrepor-se a tudo. Os horários avançam impondo um recuo da esfera privada. E mesmo estando aí é necessário permanecer contactável e disponível a qualquer momento. Passamos a viver num open space sem paredes nem margens, sem dias diferentes dos outros, sem rituais reconfiguradores, num contínuo obsidiante, controlado ao minuto. Damos por nós ofegantes, fazendo por fazer, atropelados por agendas e jornadas sucessivas em que nos fazem sentir que já amanhecemos atrasados.

Deveríamos, contudo, refletir sobre o que perdemos, sobre o que vai ficando para trás, submerso ou em surdina, sobre o que deixamos de saber quando permitimos que a aceleração nos condicione deste modo. Com razão, num magnífico texto intitulado “A lentidão”, Milan Kundera escreve: «Quando as coisas acontecem depressa demais, ninguém pode ter certeza de nada, de coisa nenhuma, nem de si mesmo.» E explica, em seguida, que o grau de lentidão é diretamente proporcional à intensidade da memória, enquanto o grau de velocidade é diretamente proporcional à do esquecimento. Quer dizer: até a impressão de domínio das várias frentes, até esta empolgante sensação de omnipotência que a pressa nos dá é fictícia. A pressa condena-nos ao esquecimento.

Passamos pelas coisas sem as habitar, falamos com os outros sem os ouvir, juntamos informação que nunca chegamos a aprofundar. Tudo transita num galope ruidoso, veemente e efémero. Na verdade, a velocidade com que vivemos impede-nos de viver. Uma alternativa será resgatar a nossa relação com o tempo. Por tentativas, por pequenos passos. Ora isso não acontece sem um abrandamento interno. Precisamente porque a pressão de decidir é enorme, necessitamos de uma lentidão que nos proteja das precipitações mecânicas, dos gestos cegamente compulsivos, das palavras repetidas e banais. Precisamente porque nos temos de desdobrar e multiplicar, necessitamos de reaprender o aqui e o agora da presença, de reaprender o inteiro, o intacto, o concentrado, o atento e o uno.

Lembro-me de uma história engraçada que ouvi contar à pintora Lourdes de Castro. Quando em certos dias o telefone tocava repetidamente, e os prazos apertavam e tudo, de repente, pedia uma velocidade maior do que aquela que é sensato dar, ela e o Manuel Zimbro, seu marido, começavam a andar teatralmente em câmara lenta pelo espaço da casa. E divergindo dessa forma com a aceleração, riam-se, ganhavam tempo e distanciamento crítico, buscavam outros modos, voltavam a sentir-se próximos, refaziam-se.

Mesmo se a lentidão perdeu o estatuto nas nossas sociedades modernas e ocidentais, ela continua a ser um antídoto contra a rasura normalizadora. A lentidão ensaia uma fuga ao quadriculado; ousa transcender o meramente funcional e utilitário; escolhe mais vezes conviver com a vida silenciosa; anota os pequenos tráficos de sentido, as trocas de sabor e as suas fascinantes minúcias, o manuseamento diversificado e tão íntimo que pode ter luz.

José Tolentino de Mendonça

De Zilda Cardoso a 22.05.2014 às 13:05

Obrigada, Vicente. Aprecio uma certa lentidão. Aprecio ainda mais o agir rapidamente e depois fazer uma pausa - para meditar, para tomar chá, para saborear o silêncio nem que apenas eu o ouça - e decidir pausadamente convencida de que terei razão. Convencida de ter usado o melhor dos dois mundos: o da pressa e o da lentidão. E que isso me fará resolver com inteligência, pelo menos, com bom-senso.

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