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"Na profundidade prateada do olival os troncos começaram a tornar-se visíveis, havia já no ar um bafo húmido e impreciso, como se a manhã estivesse saindo dum poço de água nevoenta, e agora cantou um pássaro, ou foi ilusão auditiva, nem as calhandras cantam tão cedo. Passou tempo, e Joaquim Sassa deu por si a murmurar, Se calhar arrependeu-se e não vem, mas não me pareceu homem para tal, ou teve de dar uma volta maior do que contava, isso terá sido, e também há a mala, a mala pesa, falta de lembrança, podia tê-la trazido eu para o carro. Então entre as oliveiras, José Anaiço surgiu rodeado de estorninhos, um frenesi de asas em rufo contínuo, gritos estridentes, quem falou em duzentos é mau aritmético, mais me lembra isto um enxame de abelhas negras, grossas, mas à memória de Joaquim Sassa acudiram, sim, os Pássaros de Hitchcock, filme clássico, porém esses eram malvados assassinos. José Anaiço aproximou-se do carro com a sua coroa de criaturas aladas, vem a rir, talvez pareça por isso mais novo do que Joaquim Sassa, é bem sabido que a gravidade carrega o parecer, tem os dentes muito brancos, como desde a noite passada sabemos, e no conjunto da cara nenhuma feição sobressai em particular, mas há uma certa harmonia nas faces magras, ninguém tem obrigação de ser bonito. Meteu a mala dentro do carro, sentou-se ao lado de Joaquim Sassa, e antes de fechar a porta espreitou para fora, a ver os estorninhos, Vamos embora, queria saber o que eles fariam, aí tem."
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"O lusco-fusco da manhã começava a tingir-se de rosa pálido e rosa viva, eram cores caídas do céu, e o ar tornou-se azul, o ar, dizemos bem, não o céu, como ainda ontem pudemos observar ao entardecer, estas horas são muito iguais, uma de começar, outra de acabar."
(Jangada de Pedra, José Saramago, Editorial Caminho, 1986)
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