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O olhar das crianças

por Zilda Cardoso, em 02.05.10

Em 2001, a Rede Europeia das Cidades dos Descobrimentos promoveu no Porto o seu fórum anual. O tema a discutir foi “Olhares Plurais sobre a Cidade”. Houve vários painéis e o último intitulou-se “O olhar das Crianças”. Pretendia ser um olhar informal em que “autarcas responsáveis pela gestão da cidade” debatessem “entre si e com os especialistas convidados a questão fundamental de como tornar a cidade de hoje um lugar de felicidade”.

No Olhar das Crianças a que assisti, houve uma introdução de Tonnuci, arquitecto italiano e comentários do escritor Manuel António Pina; o olhar final foi de Agustina Bessa-Luís. Nesse ano, foram realizadas coisas importantes que melhoraram a cidade em muitos aspectos. Por exemplo, foi feito o arranjo de ruas, estreitando-as e alargando os passeios com a ideia de que as pessoas podiam voltar ao centro, circular a pé na Baixa e mesmo vir à Baixa a pé, vivendo pausadamente, humanizando a cidade.

Interessei-me muito por este assunto, porque sei até que ponto as crianças gostam de estar e de brincar na rua. E recordo o privilégio que era poder fazê-lo. A cidade era o lugar a que pertencíamos e onde tínhamos o direito de estar, um lugar com história em que nos sentíamos próximos e seguros.

Recordo estar de um lado da rua, pelo Carnaval, segurando uma ponta do fio como Ariadne, enquanto do outro lado, outra miúda segurava a outra ponta. E quando um carro suficientemente bonito passava largávamos o fio que era levado a esvoaçar pelo carro. E ficávamo-nos a ver a beleza daquilo. Havia carros que levavam várias serpentinas de cores diferentes, porque passavam devagar e eram merecedores de atenção. Agora, na cidade, sentimo-nos distantes uns dos outros mesmo quando nos acotovelamos, e diferentes, estrangeiros. As ruas não são espaços participados: temos telemóveis e caminhamos por esses espaços discutindo com seres invisíveis, e o que vemos são grandes cartazes coloridos, e carros e luzes verdes e vermelhas e ditas esculturas imensas e altifalantes e tantas coisas que chamam a nossa atenção - só não nos interessamos pelos outros, pelos vizinhos. Os que estão ali e nos sorriem. Os que devem atravessar as ruas sem pressa e os que apreciam não ouvir tanto ruído nem ser de tal modo assediados por importunos que não temem a justiça. Que não vêem razão para temer a justiça. Caminhamos com dificuldade num espaço totalmente profano, não nos apercebemos de que o espaço sagrado está lá: suave, tranquilo e propício a uma elevação espiritual.

Como podemos pensar uma cidade para pessoas, ter um papel útil nela, usá-la para a nossa cultura?

Perguntaremos às crianças como gostariam elas de ver a sua cidade, sim, perguntaremos às crianças. Talvez pudéssemos voltar nós à infância. Ver com olhos limpos.

Ou vamos construir a cidade dentro de casa e então…?

A sociedade Porto Cidade da Cultura fez muito para que voltássemos a gostar da nossa cidade no aspecto urbanístico, arquitectónico, cultural. E estamos gratos. Mas precisamos muito mais, precisamos trabalhar todos muito mais para que ela seja uma cidade boa e segura para as nossas crianças, se o for para elas é também para nós, para que voltemos a dar-lhes o gosto de descobrirem o que não sabem, de gozarem a rua e viverem uns com os outros. Em paz. Será isto uma das coisas que põe em causa o essencial da democracia? O que andamos para aqui a fazer?

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publicado às 21:26


3 comentários

De Marcolino a 03.05.2010 às 11:37

Bom dia, Zilda!
Regressei, por momentos, à minha infância, em que me pude ver a bricar na rua, jogar à bola, fazer corridas de bicicletas, quiçá pular para cima dos muros dos quintais para dizer um olá, e entrar para reinar com os demais meninos que, ao verem-me, me desafiavam de imediato, a participar nas suas brincadeiras.
Ainda me recordo de falar ao telefone com duas caixinhas de fósforos, e uma linha de cozer roupa.
Ainda me recordo de saber escutar pelos carris do comboio se ele vinha perto, ou se ainda estava longe.
Quando os vagons, carregadinhos de Mandioca, passavam a passo lento, era vermo-nos trepar pelos taipais, e agarrar um bom pedaço de Mandioca, para o roer durante largo tempo.
Era barulhento, mas dava-nos um gozo enorme, poder ir de casa ao colégio, manhã cedo, aos chutos a uma lata vazia...
As ruas eram seguras. As pesoas menos agressivas. O mundo era menos promiscuo nas agressões quiçá guerras.
A Zilda tem toda a razão: Há que meter mãos à Obra!
Abraço
Marcolino

De Manuel a 04.05.2010 às 11:07

Muito bem escrito e ao correr da pena...parabéns!

De Ana Filipa Oliveira a 13.05.2010 às 14:34

Adorei o texto, pela escrita fluida e bela, e pelo seu conteúdo. As cidades devem ser locais de segurança e conforto para quem lá cresce, mas também de comunhão e partilha. Eu tenho muito orgulho, e o meu coração cheio de afecto, porque ainda hoje as minhas vizinhas (as da casa onde cresci) me tratam como a criança que ali viveu. E, neste momento, esse afecto estende-se ao meu filho. Por exemplo, fazem questão de mandar pela minha mãe uma pequena lembrança para ele, sempre que ela me visita na Alemanha. E isso dá-nos raízes mais fortes, permitindo-nos "voar" com mais qualidade. Um grande abraco.

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