Talvez a parte mais sedutora da exposição actualmente no Museu Soares dos Reis seja a que contrapõe artesanato do século XVII com o actual (atrevo-me a chamar-lhe artesanato).
Lembro as peças executadas por João Pedro Vale com papel de prata usado para embalar chocolates, papel para rebuçados e maços de tabaco, arame e cartão que são duplos das jóias preciosas do século XVIII, com os mesmos motivos de insígnias das ordens militares.
Apreciei a Cruz de Sancho que ali se vê aproximada da Cruz Relicário e da Cruz de Altar, uma persa do século XVII/XVIII e a outra da Índia Portuguesa do século XVII pertencentes à colecção do Museu. A Cruz Relicário tem ouro incrustado na madeira, prata e rubis, 28 centímetros de altura e encontra-se habitualmente numa vitrina de vidro. No momento, está pousada, livre, sobre uma mesa e a cruz de João Pedro Vale, a de Sancho, com 130 centímetros mostra-se na vitrina de vidro, como objecto precioso. Foi executada com ferro, esferovite, papel de embrulho, prata de bombom, película aderente, papel de rebuçado e cordão de embrulho e é extremamente graciosa.
De todas as peças que vi neste sector, prefiro uma espécie de centro de mesa feito de caricas de garrafas de cerveja Sagres e de uma cabeleira. Acredito que tenha um outro suporte, mas não descobri de que material. O que está à vista é de uma beleza radiosa e foi colocado na frente da tapeçaria seiscentista África, de lã e seda dos Países-Baixos. As cores harmonizam-se com os verdes e os cinzentos da tapeçaria onde uma cobra parece de algum modo desenroscar-se de trás do que chamei centro de mesa e aparecer de um lado e do outro da peça colocada num plano mais próximo do espectador.
Duas grandes talhas de faiança, branca e azul do século XIX, que julgo ter sempre visto na escadaria do Palácio, contrastam com as esculturas de Pedro Valdez Cardoso de tecido com motivos de caça a cobrir um material sólido e fino fixadas nas paredes. Técnica mista, diz a legenda, mas não sei neste caso o que significa.
Nem o que quer dizer a mesma indicação de técnica mista em relação a A Última Ceia do mesmo artista, constituída por nove peças e que me deixou perplexa com a simulação de pratos, talheres e ossos de um material recoberto do que parece tecido de cortinados, azul e branco, paisagens e figuras. Provisoriamente, as peças estão pousadas numa prateleira de vitrina de vidro com faianças portuguesas do século XVII, o título refere-se ao episódio da vida de Cristo de grande valor simbólico. Suponho que deveriam estar fixadas na parede para se apreciar o mais interessante que é o que escorre, azul e fluido, dos pratos sangrentos.
Refiro-me ainda à peça de faiança de uma fábrica de Gaia, oitocentista, com a figura de uma mulher numa face da caneca quadrangular. (Aparentemente a mulher figura três vezes na caneca, apenas vi duas), rodeada de flores e folhagens que não perturbam a nitidez da postura feminina, que será uma postura de afirmação, segundo leio. Em contraponto, as figuras erectas e primitivas de Susanne Themlitz de barro cozido, cimento, poliuretano, e outros estranhos e vulgares materiais trazem extravagantemente a mesma ideia de “afirmativa força”. Ironicamente? Com certeza.