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A tela branca e o cinema de Agnès

por Zilda Cardoso, em 24.10.09

 

Voltei às aulas de pintura de Albuquerque Mendes. No primeiro dia, depois de comprar a tela recomendada de um metro por um metro que me não coube no carro e tive que pedir ajuda qualificada para a transportar da loja para a sala de aula, sem saber o que fazer com ela muito provocante e enorme na minha frente, convoquei, quase acabrunhada, o professor.
“Sente-se aqui”, diz ele colocando-me amavelmente a uma certa distância do objecto, “olhe para a tela até que lhe surja o desejo…”
Assim tal qual.
Não surgiu. Um desejo forte não podia brotar do nada, liso e frio. E a minha cabeça estava sem pensamentos interessantes, a funcionar noutro comprimento de onda excessivamente rasteiro e incómodo.
Lembrei-me de Agnès, a cineasta belga que esteve esta semana no Porto, viva, animada, divertida, sempre pronta a engendrar coisas novas e inesperadas. Recordei as suas palavras: é necessário - concentração, liberdade, desejo de criar, de dar uma forma à ideia; esperar que o desejo seja suficientemente forte para dar a ideia. Depois é apenas um mínimo de técnica, o suficiente para tirar proveito dos instrumentos.
Tem que haver uma ideia anterior ao desejo, o desejo é o de dar forma à ideia, compreendo. Libertar-me-ei de outras coisas e vou concentrar-me no desejo de criar, de dar forma à famosa ideia que surgirá não sei como nem de onde, mas acho que não da tela em branco. Não, decididamente não sou artista pintora, não sei transformar, sem mais nem menos, o branco em cores e formas.
Isso é muito mais “uma coisa mental”.  A tela branca e silenciosa amedronta-me, as cores e as formas hão-de atrair-me – mas como transformar uma coisa na outra? Quero dizer, o nada níveo imaculado em qualquer coisa com sentidos coloridos?
Recordo de novo as palavras de Agnès, tão inspiradora. “Por trás do mistério, coloca-se a imaginação e a imaginação é própria do homem.” “…usem meios inventivos, não façam como é de regra”, disse para os jovens alunos.
Fala do cinema, dos seus filmes e de fotografias. Cita Bresson para afirmar com ele que a foto  é o instante decisivo. Há o antes e o depois e isso é cinema. Há o campo que é o que está visível e o fora do campo. Sabe-se o que se vê e tem-se a impressão do que se não vê.
A fotografia é um instante do filme da vida. O cinema é feito de um milhão de instantes, é limitado no espaço e no tempo mas é pleno de mistério. Há nele coisas imperceptíveis. Mesmo por trás do diálogo, há o não dito.
Pergunto-me se há alguma realidade no milhão de instantes decisivos deste cinema/documentário de Agnès. Pode haver, pode não haver. Do mesmo modo, pode haver ou não realidade na pintura. E pode ser uma realidade comprometida. Comunicar, diz Agustina, é a única realidade imediata.
O criador descobre o invisível; através do visível, dá-nos com prazer uma pista e nós procuraremos descobrir com prazer o que ele descobriu, quero dizer, o mesmo invisível, o dele. Ou o nosso - aquilo que nós podemos imaginar a partir do que nos dá.
Porém, a minha tela continua indiferente, intrigante talvez e inteiramente branca na minha frente. Com uma certa dignidade.
De acordo, é preciso esperar.

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publicado às 18:49


3 comentários

De Marcolino Duarte Osorio a 25.10.2009 às 08:27

Bom dia, Zilda!
Este seu desabafo é deveras lindo porque, na realidade, a sua verdadeira tela, é uma singela folha branca de papel comum, onde sabe desenhar, tão bem, as ideias que lhe bailam no interior, sempre à espera que as solte, lindas, para nos encantar com os os bailados prodigiosos, das explanações que nos faz, onde as palavras têm um perfume muito especial, o perfume da sua criatividade!

Dia muito feliz!

Marcolino

De Maria José a 06.11.2009 às 18:24

Olá Zilda!

Penso que o sentimento que retratou quanto à Pintura numa tela branca e nua será idêntico ao que muitos escritores sentem perante uma desnudada folha branca de papel. Do branco imaculado da folha ou da tela, é necessário fazer brotar sentimentos, desenhar emoções; os mesmos ganham forma e genuidade numa obra que, depois de acabada, deixa de pertencer ao autor.

Creio que o escritor Lobo Antunes mencionou este facto na última entrevista que deu na RTP1. Entrevista que adorei pelo lado humano do entrevistado.

Maria José

De Zilda Cardoso a 07.11.2009 às 12:40

Muito obrigada, M. José, os seus comentários serão sempre bem-vindos. Compreendeu muito bem, todos os criadores têm momentos de dor e momentos de prazer, espera-se que os de prazer sejam muitos mais que os de dor, e em geral são. O importante é que sejam do gosto de quem lê ou vê as obras.
É natural que tenham que esperar por bons momentos, aqueles chamados inspirados, para que a obra saia com as características que uns e outros desejam. Por exemplo, uma visão do mundo atraente que nos ponha alegres, felizes, de bem com ele.
Porém, a m/tela continua em branco.

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