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Convidei alguns amigos para a Varanda, ao fim do dia,.
Ali estavam os copos cheios não de cidra mas de pequenas estrelas douradas e brilhantes, inquietas e irrequietas. E, atentos eram os amigos ao Astro, que caminhava majestoso e indiferente para o seu ocaso.
Que não veio, já vos digo!
Estava certa de que ele se ia despedir como cada dia, com exuberância e júbilo, no que participaríamos com gosto. E que nos premiaria desde logo com uma cena ofuscante, a bem dizer. Estávamos todos sorridentes esperando o espectáculo prometido desde sempre.
Tal como EPC faria com os seus amigos se tivesse uma ilha (diz ele). Eles chegariam cantando baladas de marinheiros e depois de beberem cidra, adormeceriam abraçados, talvez, com a boca salgada.
Mas não veio, já vos digo, ele….
Quando faltavam poucos centímetros para chegar ao horizonte… desapareceu. Simplesmente!
Não fiquei apenas desolada, mas devastada.
E os meus amigos ficaram a não acreditar na magia que eu
lhes tinha longamente contado como real. Nem na beleza. Ficaram a pensar-me como de imaginação fértil e nada mais. (Não é mau!)
Assim, não houve esfera dourada e dura, aquela forma que se pode raspar como um limão. E depois verter as raspas, as aparas ou as lascas cintilantes na água salgada: viriam em ondas sucessivas e graciosas até aos nossos pés ou até à Varanda.
E nós ficaríamos deslumbrados e felizes.
Não veio.
DE COMO O MAR DA FOZ FEZ FALTA A KATHERINE MANSFIELD
Eu acho que “Da Minha Varanda” é um livro de crónicas. Se assim não for catalogado pela nomenklatura literária, para mim é o mesmo. Gosto de ler crónicas e procuro-as por todo o lado. Dito isto, na página 47 o meu entendimento do significado latente na escrita de Zilda Cardoso ficou definido na frase «Por que amamos a Vida?».
De facto, o que li e se tornou conclusão persistente são as inquietações ou desassossegos sobre o sentido do ser e da nossa própria existência num mundo em constante mutação. Mas a autora nunca perde o rumo, a verdadeira (embora nem sempre evidente) direcção de um caminho carregado de futuro (até proclama: «As mulheres e os homens novos estão aqui. Estiveram sempre aqui.»), pese embora o reconhecimento (onde esconde alguma desencantada nostalgia) de que «vamos envelhecendo sem sabedoria nem coisa que o valha» (P. 31), e (adianto eu) na nossa precariedade, como escreveu Borges «Somos o tempo». No entardecer quotidiano da sua vida, que, passo a passo, nos vai revelando, acompanhada de um rol de referências eclético e abrangente, de Barthes a Obama, passando pelos Irmãos Marx, Zilda Cardoso, sem disfarces ou subterfúgios, deambula poética ou prosaicamente, pela sua área de conforto: o inevitável Carpe Diem onde, a partir, de certa idade encontramos refúgio.
Mas este livro tão denso, onde perpassa um «air du temps» de certo pensamento filosófico contemporâneo (ou não fosse a formação da autora) repleto de ocultações que se escondem na frase «Mentir é complicado, requer grande inteligência e argúcia» (P. 83), a melancolia das incertezas não impede que, ao menos por uma vez, se liberte das peias e labirintos de uma escrita que, com frequência, se deixa enlear na cogitação especulativa e regresse à terra, acorde para a realidade da gente comum e não resista, por exemplo, aos prazeres da mesa.
E à medida que a minha leitura avançava, as crónicas iam desfolhando páginas de um deve-e-haver de afectos e algumas evocaram-me sentimentos há muito armazenados no computador que temos no lado esquerdo do peito (eu tenho um pacemaker, mas faz o mesmo serviço). Algo como se, afinal, tudo junto não passasse de um diário construído de dúvidas, encontros e desencontros nas horas de angústias e renúncias, em que nos movemos. Um retrato íntimo assim desvendado trouxe-me à lembrança uma secreta paixão literária dos dezoito anos: Katherine Mansfield e o seu “Diário”. Em alguns momentos. Mas rapidamente compreendi a inconsistência da associação das minhas ideias: existe uma diferença irreconciliável entre as duas obras: a de Zilda Cardoso é repleta, de horizonte e tresanda a sol e praia vistos e pressentidos repetida e insistentemente da sua varanda. Sem o spleen envolvente das amarguras de Mansfield e com a vibrante luminosidade do mar da Foz que esta, para sua infinita perda (se tivesse aqui vivido não morreria aos 34 anos) jamais contemplou.
Helder Pacheco
Agradeço muito penhorada a opinião do Prof. Helder Pacheco sobre Da Minha Varanda... a ser apresentado em 19/11 às 18h na Biblioteca do Museu de Serralves por Monica Baldaque.
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