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Se bem me lembro, à noite tudo muda, vira festa e divertimento. Espero que assim aconteça, pois que os portuenses não encontram melhor noite do que esta para festejar, não se sabe o quê. Ninguém se lembra do Santo nem das suas virtudes que são muitas. Teremos que as estudar e rever nos livros de Helder Pacheco.
Os portuenses têm uma noite maravilhosa por ano, dão largas ao seu ânimo e entusiasmo, não há lugar para mágoa nem ressentimento.
Recordo que eu só tinha permissão para sair à noite nesta noite e acompanhada por alguém alegadamente responsável. E mesmo assim, devia regressar pelas 10 horas.
Aí havia choro copioso: como podia regressar à hora a que era cedo para sair? As pessoas começavam a caminhar para a baixa por essa hora. Começavam!
Lágrimas comoventes inundavam-me e faziam o efeito desejado. Talvez regressar às 11 ou às 12!?
Acabava por ganhar graças ao argumento irrefutável!
Cada pessoa empunhava um alho porro enorme e tocava com ele na cabeça daqueles com que se cruzasse. Cheirava mal o alho e era preciso chegar a casa e lavar o cabelo comprido e vasto difícil de secar, mas havia que manter o sorriso.
“Se não gosta, fique em casa!”
Percorriam-se as principais ruas de baixa, batendo ou dando a cheirar o alho. E toda a gente exibia o sorriso luminoso. Estes grupos incluíam velhos e novos, mas havia também os de jovens que se davam as mãos e corriam assim, juntos, uma fila deles, por entre outros grupos, nas ruas, cantando e rindo, atropelando-se, levados, levados sim…
Lá íamos que o sonho era lindo… o tronco em flor… estendia os ramos à mocidade que passava. Querer, querer e lá íamos…
Querer, lembro agora, é mais dinâmico do que desejar. Nós desejávamos muito, o querer estava muito mais perto da acção, de modo que, se apenas chegávamos ao querer com esforço, habilidade, cumplicidade, era isso que íamos ter.
Querer tinha que ser a nossa divisa, na ocasião.
Estão a imaginar o que isso representava na época. E nós nem percebíamos bem as palavras dos hinos que repetíamos e pareciam importantes – o nacional e o da mocidade portuguesa. Nem percebíamos, nem percebemos.
Porém, a noite de S. João era a nossa noite triunfal de liberdade, de libertação. E só daí a um ano podíamos ambicionar ter outra experiência assim exaltante.
(Agir foi muito mais tarde.)
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É obra de um Deus Maior… que o engendrou à sua imagem e semelhança, dizem. Eu proponho considerarmos que o criou à sua medida, não é o mesmo.
Porém, as suas criaturas, nós, estamos longe e abaixo dessa medida.
Apenas povoamos (usamos) a obra criada. De forma, incrivelmente inferior à grandiosidade dela.
Por isso, não entendemos. Nada nos é acessível por muito que analisemos, investiguemos, procuremos com cuidado extremo.
Restamos ignorantes. Provavelmente nunca em tempo algum teremos a certeza de saber.
Não chegaremos à verdade.
A menos que Ele queira.
Tudo o que julgamos saber está errado, chego a esta conclusão.
Porém, nenhuma conclusão é fiável (pode alguma coisa não estar errado).
A verdade não tem nada a ver connosco, é de outra espécie. Desconhecida. Somos infinitamente incertos, estamos em permanente evolução e, por isso, em nenhum momento somos.
Que podemos saber de bom e de mau, de feio e de bonito, de quente e de frio? Como podemos saber se algo está bem ou mal concebido? No entanto, queremos ser semelhantes Àquele que nos criou, isto é, perfeitos. Queremos saber perfeitamente.
Nada disto faz sentido. Ou talvez seja bom assim.
O mais próximo da atitude correcta parece-nos ser considerarmo-nos todos maus (com todos os significados e sentidos possíveis), seja qual for o ângulo de observação.
Há uma ideia do Mundo Antigo que me impressiona ainda. É que não passamos de escravos, ignorantes, miseráveis e pó a que seremos reduzidos em devida altura, logo que haja oportunidade. E tudo o que andamos a tentar realizar durante a vida, e a lutar por…, não vale nada. Basta um ligeiro toque no ponto onde Ele sabe e nós não, e tudo se desmorona.
Fá-lo-á por divertimento, não acredito que seja por vingança, como já ouvi.
Não uso ser pessimista, vejo e não me exalto, procuro racionalizar. Atrevo-me a pensar que vivemos não à imagem Dele mas à nossa, seja isso o que for. E não precisamos de, porque não podemos tê-los, resultados transcendentes como construir novos e aliciantes mundos contemporâneos. Cheios até à medula de inteligências artificiais loucas.
Precisamos que a semente que lançamos à terra dê o cereal louro com que confecionaremos o pão. De preferência sem glúten. E que reduzido a pó e amassado com água como barro e com uns pozinhos de perlimpimpim nos dará a massa por de mais manuseada que meteremos no forno em pequenas doses. E que rescenderá.
Sai sempre bem, desde que não nos descuidemos. Depende de nós, nesta fase, a este nosso nível. Alimenta-nos a nosso gosto e mais ou menos sal. Então oferecemos àqueles amigos que não tenham ainda descoberto como sobreviver.
Ficamos felizes.
E um dia surge uma extraordinária poeta/poetisa (Sophia) que afirma:
“Ausentes são os deuses mas presidem!”*
Terá razão.
*(pag. 244 de Antologia, Moraes, Ed., Lisboa 1975).
Tantos acontecimentos, tão poucos dias. Arrasada estou.
Um pássaro cinzento ainda implume, cai de um ninho algures. É um bebé, recolheu-se na minha janela, entre as duas vidraças e aí ficou inquieto.
De meia em meia hora, eu vinha espreitar. Ele continuava assombradíssimo. Depois… já não estava. Abri mais a janela e…
Não creio que tenha escapado, sem a sua mãe. Lamento não poder fazer nada por ele assim num dia de tempestade, cedo de mais e dia tenebroso para sair do ninho.
Desapareceu uma grande amiga que deixou obra imensa e valiosa. Sabia que ia acontecer um dia destes, mais dia, menos dia, não há como fugir. O importante, o essencial é que vamos ler os seus livros, prometido, com bom desejo de compreender e de aprender. Não foi uma vida sem sentido. Ela estudou, reflectiu, quis. Construiu com inspiração e muito trabalho. Com génio. É património de imenso valor que não vamos dar-nos ao luxo de desconsiderar. Vamos ler.
E, inesperadamente para mim, partiu uma outra amiga – uma senhora muito digna e muito risonha, encantadora, cheia de boa-vontade e ternura por toda a gente. Eu admirava o que lia nos seus olhos. E me tranquilizava.
Escutei poemas de Sophia, ouvi falar da sua obra e das suas paixões - o mar, a Grécia clássica, as praias nuas, a Primavera, a sua estimulante amizade por Maria Helena e Arpad, o que escreveu uma, o que pintaram os dois…
E vi a chuva e senti o vento fortíssimo de um destes dias, o sol e a ligeira brisa das manhãs seguintes. Seria tão mais fácil viver se tivéssemos três meses seguidos de cada estação do ano com o tempo combinado e estipulado desde sempre. Seria tão fácil, não sei por que não nos empenhamos em conseguir algo tão simples, não seriam precisos fantásticos laboratórios nem lentes astronómicas. Seria apenas uma porta a fechar a Primavera e outra ou a mesma a abrir o Verão que seria usufruído a partir do dia estabelecido no calendário. Prevenidos estaríamos. Assim, é sempre diferente e imprevisto e os nossos desejos parecem sem sentido.
Sou sensível a todos estes acontecimentos, às diferenças, afectam-me e são a agitação do mundo como a cor do céu e a do mar, as formas das nuvens que acabam por perder-se como estranhos sonhos…
Tudo me diz respeito e é parte do meu mundo... o horizonte, o ponto onde o mar e o céu se encontram e que permanece o mais curioso mistério. É o que mais procuro definir: o seu desenho, a nitidez, e o que talvez acabe por encontrar - o seu esplendor. O que passará para além desta linha que interrogo a cada instante perfeito?
Há muitos objectos, muitos factos que me escapam. Não sei, não compreendo. Tem a ver com alma? Com sentimentos? Com silêncio?
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