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O mundo assemelha-se ao caos, esta manhã.
Também é verdade que viver e, muito mais, ter de viver é uma actividade perfeitamente frustrante. Para mim. Disto tenho a certeza.
Nada está organizado de forma a simplificar a vida. Pelo menos, a minha vida. E, por isso, para que vale o enorme esforço de organizar…?
Matamo-nos e nada está como precisamos.
Por exemplo: estes livros. Tenho uma pequena biblioteca, livros de que gosto um por um, conheço-os. Preciso de os consultar, mas começam a ficar tão fora de ordem que… não sei. Principia até a irritar-me o entrar nesta minha sala, que era de longe a mais querida, onde me sentia de bem com o mundo. Em tempos, ansiava pelo momento de estar lá, alone… alguma coisa acontecia… uma epifania.
Com alguma paciência, consulto o ficheiro dos livros outrora feito com tanto cuidado, mas não avanço, nada corresponde.
Se isto é a realidade… que confusão atarantada!
Lá fora é o mar e os barcos, as rochas e a espuma, o céu e as gaivotas, as nuvens brancas e a brisa leve… estará tudo em ordem ali? Se “nada flutua sem nome e sem ruído”, talvez.
Mas fico com ar de distância…
Ocorrem coisas inconcebíveis quanto a memória. Fui ao dicionário verificar certas noções, pelo sim, pelo não.
O dicionário diz – tomada de consciência do passado como tal; função geral de conservação de experiência anterior que se manifesta por hábitos ou por lembranças.
Fiquei a pensar…
A situação actual é esta: esqueço-me de quase tudo a principiar por nomes – de pessoas, de lugares, de instituições, toda a espécie de nomes.
Acontece que faço uma pesquisa e, de súbito, poucos minutos passados do início da busca, mas podem ser horas ou dias, o nome procurado salta brilhante como estrela num firmamento de estrelas luminosas sobre fundo puramente negro… quando já não preciso da palavra… totalmente a despropósito.
Este funcionamento, esta dinâmica é para mim um mistério.
Outra coisa curiosa a propósito de memória é que me recordo, palavra por palavra, de velhíssimas cantigas da infância, não tanto da minha infância mas também. O que me vem mais à memória, são as canções tradicionais francesas como “c’est la mère Michel qui a perdu son chat, qui crie par la fenêtre qui le lui rendra…
É uma das muitas que podem martelar-me a cabeça impiedosamente durante horas sem que saiba a que propósito.
Às vezes, penso que é o que acontece aos deputados e aos ministros do reino que ficam sem espaço na cabeça para reflectirem e resolverem os problemas do País ou da Europa, aquilo para que foram eleitos.
Vejo-lhes na expressão que estão a cantarolar secretamente e compulsivamente la mère Michel, ou Malbrough s’en va-t-en guerre, mironton, mironton, mirontaine, on n’sait quand i’reviendra, ou num dia de sol, sur le pont d’Avignon l’on y danse, l’on y danse, l’on y danse tous en rond.
Como podem trabalhar no que lhes compete, sobretudo pensar com inteligência e sensatez se a sua cabeça está a ser flagelada por copiosas ladainhas infantis e contagiantes canções de embalar tradicionais que se instalam e não arredam pé?
Não podem e não têm culpa.
Elas… começando não largam a vítima. É esgotante, como calculam.
Coitados!
Falta de desejos e de projectos… assim é a velhice.
Por melhor que se compreenda isso e se tente escapar, fugir, escapulir… não é possível. Não é possível esgueirar-se ao envelhecer ou travar a evolução que acaba por ser envelhecer.
Porém, pode adiar-se com muito esforço e vontade e convencimento de que isso é o melhor para cada um. Esforçar-se por contrariar o que é evidente e é e pode ser a definição da própria velhice – a falta de desejo que é o que nos leva a agir, a realizar, pelo menos, a projectar. A realizar grandes e pequenas coisas, boas e más.
Rapidamente o cérebro - aquela máquina que nos faz viver desta ou daquela maneira com maior ou menos energia e racionalidade fica anquilosado e tem dificuldade em movimentar-se, cada vez maior dificuldade.
O interessante é que cada um se dá conta do que está a acontecer. E sofre por não poder de todo evitá-lo, contornar, passar à frente ou além.
Tudo o que pode fazer, se está interessado em continuar uma vida aceitável, é atrasar a evolução, desejando.
Depende de si.
Aceito a selva como selva, não aceito o jardim como selva. De modo que, há dias, mal cheguei à Casa da Eira, comecei a reorganizar o jardim como jardim, campesino, provinciano e acolhedor.
Aproveito o que nasce espontaneamente ou assim parece, e tento aceitar a mistura de cores e de formas que deste modo surge e se instala. Por vezes, as plantas entusiasmam-se de mais e crescem sem medida ou para além da minha medida, mas o que mais faço é cortar as folhas secas.
De novo, apenas coloco plantas aromáticas que perfumam o ambiente e dão sabor aos alimentos.
Há anos, apaixonei-me por “capucines”, (não consigo dizer o nome em português, tão triste e desadequado), e plantei muitas em sítios estratégicos para que tombassem sobre os muros ou trepassem por eles, alegrando sempre os canteiros.
Elas ficaram dançando por ali.
Resistiram durante anos a muito maus tratos, quase desapareceram, mas este ano há um canto enorme só de capucines, capuchinhas, chagas. É um esplendor em laranja, vermelho e amarelo!
Raramente olho para elas que não me recorde de uma canção infantil assim, mais ou menos:
Dançons la capucine
Y a pas de pain chez nous
Y en a chez la voisine
Mais ce n’est pas pour nous.
You!
Recordo também um dos quatro maiores boulevards de Paris, o das Capucines, o belíssimo quadro a óleo de Monet e as marcas dos sacos Vuitton de grande luxo com o mesmo nome. Por quê lhe chamar capucines, sendo as flores tão silvestres, quase rudes!? Embora alegres, de festa!
Alem do canteiro exuberante e decorativo, posso enfeitar as saladas com as folhas e as flores e devorá-las. E sei que fico enriquecida em vitamina C, ácido oxálico e fosfórico, além de cada flor ou folha, ou grão ser estimulante, desinfectante, depurativo, diurético, anti-escorbútico, etc. - um mundo.
Que acontecimento importante posso ligar a isto? Futebol? Campeonatos de futebol?
Parece que esta semana é o fim, quero dizer, o fim dos campeonatos nacionais para esta época. Será decisiva para determinar o campeão. Há lá alguma coisa mais marcante?
Ocorre-me perguntar: vamos falar de quê depois de terminar o campeonato?
De futebol, evidentemente.
É necessário ter uma cultura imensa para discutir em todas as horas de um dia, todos os dias, acontecimentos de importância transcendente como futebol, sem intervalos para sossegar e recompor-se.
Devo dizer, para meu conforto, que o jogo, divertido e atlético, foi de há muito transformado num tormento de família, numa tragédia a que os adeptos morrem-por-assistir ao vivo. E, de cada vez, vibram com a mesma emoção, ao rubro! No entanto, e finalmente, é um jogo sem subtileza nem grande inteligência ou razão, sem hipóteses nem variações ao infinito. Ou se ganha ou se perde, assim. Aquela do empate não é para levar a sério.
Por isso, se fizeram entrar milhões nas contas dos clubes, muitos milhões que não sabemos contar, mas que aliciam. (Será importante afinal?) E levam à guerra. Às lutas de todos contra todos como quando não havia futebol.
E pronto, são dias pequeninos, os nossos, os de todos nós, nunca acreditei que tivessem vinte e quatro horas.
Se me interessa interessar outras pessoas no que escrevo, devo falar de assuntos de interesse alargado e não apenas da paisagem.
Porém, o que há de mais importante do que a paisagem?!
A paisagem é uma parte do mundo de que faço parte. É onde vivo e vivemos e estamos, no momento. Na verdade, em todos os momentos. Participamos da paisagem naturalmente e, por isso, ela é relevante.
E determinante da nossa actividade, à parte o trabalho que não deverá ou poderá não depender dela. Por que esteja como estiver, chova ou faça sol, iremos trabalhar ou estudar ou realizar o que deve ser realizado.
Tudo o que nos acontece… é no pedaço de mundo em que vivemos que acontece. Dependemos do sol, do vento, do mar, dos rios ou da montanha, da chuva… (“Quantos anos tem a chuva?” citava muito curioso Eduardo Prado Coelho)...no pedaço de mundo, na paisagem a que nos habituamos.
Verdadeiramente, a minha casa, o meu lar é isso e não apenas o recanto enxuto onde me deito e descanso ou me sento e contemplo. Onde ouço o telefone e sou sujeita à má educação de quem me procura e reage de forma agressiva às minhas respostas ingénuas. (O interlocutor era pago para me falar e tentar obter a minha adesão a um qualquer serviço oficioso, mas pronto! o pobre estava maldisposto).
Quer dizer, não há nada suficientemente tosco de que valha a pena falar, sobre que escrever. E não vou entrar nos esquemas dos jornalistas, no sensacionalismo, de que há muitos anos só O Jornal de Notícias, do Porto era culpado.
Actualmente só sobrevive o espectacular, quanto mais tremendamente espectacular melhor. Que importância tem ser verdade ou não? É evidente que não tem... não se trata de informar.
Entretanto, analiso, procuro, estudo… não encontro.
Simplesmente, estou a reduzir a minha actividade intelectual e a física. Por isso, não terei, não quero ter muito em que pensar, não tenho de que falar. Uma coisa sedutora é certa: não me apetece estar onde estou.
Mas, apetece-me estar onde não estou. Talvez descubra nesse lugar-onde-não-estou alguma coisa fora do comum, do rotineiro, algo que não tenha visto nos lugares e momentos que passei ou passaram por mim.
Além disto, está um dia por de mais cinzento e há muitas coisas difíceis, como aquela do telefonema neurótico. Calculo que esse cinzento, brumoso, húmido e nevoento, essa massa tenha entrado em certas cabeças onde fez estragos irreparáveis. Talvez essas máquinas tenham sido construídas com materiais altamente degradáveis, enferrujáveis e sensíveis a certos orvalhos.
A minha intenção é levar os que me leem a concluir que vale a pena pensar e escrever simplesmente como quem dança.
Nada de histórias!
Como corpos que dançam sem tentarem contar uma história. Somente porque têm energia e querem revelá-la. E ultrapassar-se. Metamorfoseando-se a cada momento.
São fascinantes.
Quero falar do acontecimento mais importante do dia: faz sentido. Mas tenho de o eleger. E devo procurar o momento certo para a eleição.…
Começo por tentar compreender e definir o que seja o mais importante. Para quem? Onde? Em que época? Importante no próprio País, no Ocidente? No meu grupo e no meu tempo?
Escrevê-lo-ei de uma maneira ou de outra de acordo com a forma como o sinto. E posso descrevê-lo do mesmo modo, com idêntico sentimento.
Não estou impressionada com os acontecimentos políticos nem com os desportivos. Não com o Casillas nem com o primeiro restaurante vietnamita no Porto. Não com o calor à beira-mar, neste princípio de Maio, nem com os turistas que já invadem a cidade e põem os nossos pequenos negociantes a tiritar de prazer.
O acontecimento mais importante do meu dia, aquele que eu deveria ligar a factos reais, apenas posso encontrá-lo ao fim do dia, naturalmente, quando o Sol se vai e me leva com ele o coração e eu sinto em mim o vazio ou o espaço para novos aconteceres.
Quando mergulha e se vai, é um globo incandescente, um mundo integralmente dourado e intensamente brilhante graças ao desejo de nos deixar fascinados, penso.
Por momentos, metade do meu horizonte fica dourado, cor de laranja e azul, como está. E é muito belo.
As gaivotas e os outros começam a passar para penates, a temperatura baixa e tudo se aquieta.
Escurece lentamente e talvez as estrelas venham a decorar o céu, torná-lo deslumbrante mais tarde. No momento, é azul claro com amarelo e com alaranjado, com rosado...
“O conhecimento diminui a amargura da velhice” parece ter dito Leonardo da Vinci.
Se ele disse deve ser verdade, ele sabia pensar. E porque acredito, tento adquirir, um pouco à pressa, os mais variados e valiosos conhecimentos. Consegui alguns hoje.
Por exemplo, houve um acontecimento importante de manhã, muito informador, provocado por mim: prestei homenagem àqueles que muito estimo, que continuo a estimar, que me amaram e mesmo se sacrificaram para que eu tivesse o melhor. E que agora estão finalmente serenos.
Levei-lhes flores brancas e deixei-as em água fresca. Varri as folhas secas e promovi o silêncio no lugar. Ficou um silêncio tão peculiar quando saí! Um silêncio tão sorridente!
Desejei que estivessem bem, eu fiquei bem. E a saber que é possível tirar excelente proveito espiritual de um quase nada, de um pequeno intervalo…
O outro acontecimento foi a visita à exposição de Escher, o grande artista gráfico holandês, na Alfândega. Fiquei a reflectir no interesse e na beleza do seu surpreendente e inteligente trabalho que será uma pena não ser visto por um enorme número de pessoas no Porto, como tem sido noutras cidades.
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