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Hoje às 5 da tarde, o azul do ar misturou-se com vermelho. E eu gostei.
A diferença é importante e vi que não havia outra, era essa a diferença, foi o que tornou o dia desigual.
Observando perto do campo de jogos, reparei que nos estávamos empanturrando de almoço para todo o dia, como é ajuizado proceder. Compreendi que devia fazer tal qual, de vez em quando.
Porém, desconcertou-me nada acontecer no campo. Não havia jogadores nem gaivotas, não havia nada a acontecer nem para ocorrer.
Foi um dia muito vago, poucas criancinhas, não houve brincadeiras. Quase perdi a esperança no mundo: ninguém gritava nem chorava nem falava alto nem ria em parangonas, nada.
Não é natural, o mundo não é isto.
Aqui, os meus pensamentos só podem ser inquietos, as palavras que os traduzem e deviam transmitir e comunicar… não têm graça. Prefiro não pensar, poderei ser capaz.
A verdade é que passei boa parte da tarde a recordar o dia anterior, afinal, em que assisti encantada à cerimónia do doutoramento honoris causa de Agustina Bessa-Luís na UTAD. Pensei demoradamente na genialidade da sua obra e sobretudo na sua vida que considerei tão fora do comum.
Recordei, com tempo, alguns simples acontecimentos e factos que ao longo de muitos anos passaram e que presenciei ou em que participei.
Servia em sua casa, na pequena sala onde escrevia, um chá que era para mim a bebida mais saborosa do mundo. O seu cão atento e mimado assistia sentado no cadeirão com parte do pelo puxado para o alto da cabeça, amarrado com um laçarote.
Mas recordo também as suas idas a Moledo, à Casa da Eira, em dias de almoço festivo e campeonato de malha. Era curiosa de tudo, queria saber como se fazia o puré e o refresco de maçã, a compota ou os biscoitos…
Ou à Quinta do Casal do Condado em Ponte de Lima para passear no campo de MiniMoke amarelo, pisando a hortelã pimenta silvestre e odorífera, e dispersando o olor fresco pelas proximidades. A nossa convidada, que dava conta de todos detalhes, sentia o perfume intenso e singelo e húmido, e regozijava-se.
Ou dentro de casa, apreciando amavelmente as aguarelas de cores suaves expostas e falando da Paula Rego de quem me ofereceu um livro na ocasião.
As conversas sobre qualquer e todos aqueles assuntos que eu nunca pensei poderem ser abordados por ela, para mim…
Encontrávamo-nos por vezes em jantares de amigos e eu via que tinham temor dela, medo da agudeza da análise que ela faria, qual sibila, receio de serem entendidas como não queriam, para além da máscara, da maquilhagem e do protocolo.
Falou comigo de alguns dos seus amigos artistas como a Maria Helena e o Arpad com quem convivia, e a quem um dia pediu o endereço de um médico que também eu consultei em Paris…
Jantei ainda em sua casa como convidada do Consul da Bélgica e lembro Agustina ter respondido, quando lhe fizeram aquela velha pergunta fatal, “o que gostaria de ser se não fosse escritora”, que teria o maior gosto em ser cozinheira. Não acreditei, acho que ninguém aceitou, todos sabiam da sua paixão concreta pela escrita e pelo romance, o seu profissionalismo de escritora, apesar da excelência dos cozinhados e da mesa posta com brio e primor.
Na sua casa e no jardim, magia em plena cidade do Porto com vista para um rio e para uma ponte, podia, se quisesse, estar só e livre e em silêncio. Ou podia ser independente. Onde talvez o seu génio se acendesse...
Compreendem que estou a tentar manter a grande conversa universal…
Estive na Quinta do Casal do Condado, em Ponte de Lima e, sem dúvida, a beleza do espaço fez a diferença entre o presente e qualquer dos recentes dias.
O Outono na Quinta é definitivamente fascinante em termos estéticos. E não estou a exagerar: pode confirmá-lo se por lá passar, quem por lá passar, nesta época.
Tudo se revela muito acima do alguma vez esperado: a inconfundível beleza das árvores e dos arbustos e dos cactos exóticos; e os lagos, e as águas dos riachos que correm, que caem e que logo continuam a despachar-se por entre as pedras, produzindo os pequenos sons agradáveis e macios das cantigas de todos os bem aventurados e felizes realizados. São as águas que entram e saem e se esvaem mais longe, já fora do terreno, no rio Torto ou Tinto ou não sei.
A Quinta é um lugar de cultura, onde o gosto pela natureza determina o trabalho a realizar nela, cada dia.
E cada árvore é particularmente relevante nalgum aspecto: algumas na cor e nos matizes da folhagem, outras e as mesmas na forma das copas e na pele dos troncos, no perfume dos frutos maduros a intumescer, e na finalidade, naquele espaço, de cada uma e de toda
Ainda estão por ali os frutos vermelhos silvestres, as muito aromáticas ervas, as flores roxas, os inúmeros botões fechados e apertados de camélias das japoneiras, as roseiras a quererem florir…
E há, do mesmo modo, aquelas sonoridades muito filtradas e que, por isso, se não definem de todo. Não encontrei o meu amado silêncio, não, não o houve. Os sons, os pequenos sons macios de que falei, são os da água que canta e se prolonga e não se cansa porque é isso que ela faz. E porventura de qualquer coisa que se não define ou que não sei definir…
Venho de lá sempre comovida, mas tão confortada! Tão aberta ao mundo. A sentir que talvez tenha uma alma razoavelmente contemplativa que se apercebe da perfeição das coisas, apaixonada por elas, capaz de descobrir, de ver, de transmitir a partir delas imagens reluzentes!
Daí a pouco em pleno campo, desatou a chover, acordando-me daquela realidade. E depois abriu o sol. E depois voltou a chover aquela chuva obliqua, sabem?
Que dia diferente! Que dia tão diferente!
Fotografia de Gabriela Gonçalves.
(Tenho vindo a falar de dias desiguais. Registo que hoje foi um dia muito desigual, mais do que qualquer dos anteriores).
Não olhei o mar, não reparei se as ondas se elevavam em enigmática vertigem, em cascata de espuma, até ao céu, ou se enlaçavam as rochas negras num pequeno e magoado desejo de conciliação.
Não vi turbilhões nem tampouco clarões dissimulados….
Abreviando e simplificando… se elas (as ondas) eram amorosas ou furiosas; se ele (o mar) estava zangado ou tranquilo ou divertido, enfim.
Não sei nada dele, não o olhei sequer.
Mas ele é o principal.
Saí ao princípio da tarde. Passeei na avenida, aproveitando o sol esplendoroso e uma temperatura acolhedora. Encontrei-me com uma amiga, passeamos, conversamos… e quanto a mim, não desanuviamos de problemas.
Sentamo-nos na esplanada do BH e um solícito empregado veio dizer-nos claramente que não estavam a servir. Pois. Não fez mal. Estivemos. Não nos consumimos por demorarem tempo infinito a servir, foi ideal.
E quando tivemos tudo desconversado, separámo-nos e seguimos a pé em sentidos contrários, apesar de com o mesmo objectivo, para nossas casas.
Estava cansada e quase adormeci quando cheguei. Duas horas de caminhada e um longo intervalo, sem o mar de apoio e estímulo…
Na realidade, senti-me descomprometida, demasiado descontraída e incapaz de testemunhar o que senti, o que vi e o que não vi, sobretudo o que não vi, e de arriscar pensamentos universais, lúcidos e aptos a salvar o mundo.
Eu queria um dia diferente apenas, o que aconteceria se não tivesse o amparo da minha principal fonte de emoção. Seria diversa a paisagem, o mesmo lugar. E tive-o facilmente: bastou não olhar o mar onde tudo acontece, desprender-me dele e da sua magia irradiante.
Para mim, sem bons resultados.
Uma amiga disse-me ontem: quero ir tomar chá contigo num sítio onde haja árvores… que não seja Serralves, há outro lugar?
Eu não lhe sei dizer.
No Club… lembrei-me agora, talvez no Cricket. Mas para o chá, o Club não é bom, se bem que tenha árvores muito favoráveis.
Adiamos o chá… até nos lembrarmos de um melhor lugar possível.
Mesmo em Serralves, na Casa de Chá no meio do jardim no campo de ténis, tão agradável, vou reflectindo, não sei se é ainda praticável. Esteve fechada a Casa muito tempo. Como estará agora?
Mas não é admissível, resmungo alto, ninguém gosta de árvores no Porto?
As casas de chá que eu conhecia na minha zona, onde era possível ir apreciando as árvores de cores vibrantes, as grandes rosas azuis a desabrochar para mim e para ti e as glicínias brancas até ao chão com aquele ar inocente e matinal, já não servem chá, não se aguentam só a servir chá, dizem.
Como posso concluir que o mundo é maravilhoso (apoiando o Louis Armstrong na sua velha canção) se não há e não vejo tesouros desses enquanto tomo a minha menta perfumada?
O céu… gostava de o ver azul, está já escuro à hora do chá, razão por que não contemplo o arco-íris no rosto das pessoas que passam, nem os amigos cumprimentando-se com aquele bom ar disponível e acolhedor, dizendo como vais, enquanto pensam que muito se apreciam, que se amam, I love you, como dizia o velho senhor negro, tão sensível.
Que diria ele nesta luz indecisa, sem azul e sem nuvens brancas, apesar da fatia de lua com contornos brilhantes daqui a pouco na escuridão? Não penso que chegue para sacralizar a noite, apesar da sua força sedutora.
E não é possível ver a perfeição, nesta luz, esse espectáculo excessivo e desconcertante que eu aprecio antecipar e não avalio realmente já que nunca chego a tempo.
A que mundo devo renunciar então?
Que mundo devo anunciar?
São 7 da manhã, que hora extraordinária para começar o meu dia!
Bebo um copo de água fresca, faço um chá de ervas perfumadas, como alguma fruta e tomo um café com grão acabado de triturar, cheiroso e saboroso.
Vou ao computador. Haverá novidades no FB?
Antes, observo a paisagem, saúdo o que vejo. Sorrio muito hoje, está tudo como me agrada: o sol brilha, o mar dança, o vento não está aqui… As rendas que cobrem uma boa parte do mar não são de Bruxelas, são nossas, finas e sofisticadas, antigas e muito modernas.
A cidade está iluminada naturalmente, as casas com os seus quintais sobem um pouco no morro, telhados a brilhar, e os pássaros circulam sem ruído lá no alto, não muito alto. Raramente se cruzam, vão todos na mesma direcção com objectivo semelhante.
Ficam negros no azul e não sei o que veem lá de cima com os seus olhos peculiares, são graciosos, leves, cheios de força, de impulso, de graça...
What a wonderful world!
Vou ler. Seguro um livro de Mallarmé. Tento ver “Un coup de dés” (jamais n’abolira le hasard).
Não vou poder prestar atenção. Para um fim-de-dia que já é, é muito complexo. Fica aqui para amanhã com outra luz. Com alguma restante capacidade de raciocínio.
Un coup de dés… jamais n’abolira le hasard!
Não.
Prefiro “what a wonderful world”!
Hoje o Sol brilha sobre um grande mar de espuma de cor desconhecida. As vagas… não sei de vagas, sei de movimentos de espuma dispersos, irregulares, pedaços de ondas, que não sabem para onde se encaminhar. Ou é um mar que se diverte, em férias de Inverno.
Daí a pouco, o Sol deixou-se cobrir de nuvens e o deslumbrante brilho da espuma desapareceu. Murchou o mar. Está sem energia, sem alegria, sem habilidade.
Presentemente o espelho do mar é o céu. As ondas estão lá no céu, mas paradas, não cintilam, são outras, são de outra espécie. Só a forma se assemelha rudimentarmente.
Um dia para não olhar senão para dentro!
Porém, insisto.
A espuma recorta-se na areia, faz desenhos e avança, escorregando, arrastando-se e enfim desenhando a sua fronteira na praia húmida. Abraçara as rochas e avançara sem alarido, prosseguindo abatida… As rochas ficaram no seu lugar, serenas.
Todo o ar é cinzento e translúcido, a espuma finíssima volatilizou-se e, desse modo, acinzentou a paisagem como um vidro sujo, alterando-a.
O horizonte deixou de ser uma linha de separação, um fino limite entre o que posso ver ou me é dado ver e o que tento adivinhar. Está esbatido, não sei o que é assim vago, esconde mais do que revela, misterioso, cada vez mais.
Aprecio a lucidez mesmo quando é insuportável e não vou permitir que este texto se transforme num tédio de palavras ou de imagens.
Tenho visto esta cena, dia após dia, por muitos dias, a nevoa a cobrir tudo, a encobrir muito…
Sinto um esvaziamento… Como falar-lhes desta minha experiência da realidade tão cheia de nevoa, se não tenho palavras aliciantes para a descrever? Aliciantes, quero dizer, sedutoras para quem as ler. Que deem prazer.
Tento ocupar o meu tempo com pensamentos traduzíveis em palavras agradáveis e que signifiquem. E as palavras… devem adequar-se aos pensamentos, não servem quaisquer (já que é com palavras que construo os meus pensamentos).
Portanto, nem quaisquer palavras nem quaisquer pensamentos. Alguma originalidade é desejável.
Penso que as palavras surgem com os pensamentos não sem eles. Os pensamentos surgem com acontecimentos e… com o quê?
É possível afinal estar vazia de pensamentos, mas não quero estar.
Os pensamentos que exponho aqui são sinceros e são perturbadores. Esforço-me por dizê-los em palavras e fraseados que, quando saem sem graça, quando receio que não vão interessar alguém, quando repetem o que já foi repetido, me deixam muito inquieta.
É a única ocasião em que reconhecerei que o esforço não vale a pena. As palavras desejadas não surgem com coragem apenas. Talvez com o ou um desejo. E não é suficiente.
Assim, vou usar tão só o meu silêncio. Talvez a sedução esteja no silêncio, não nas palavras. E porventura também afinal em alguns pequenos ruídos do mundo, de asas e de cantos prováveis aqui à beira-mar, e de sussurros, de ecos …
As ondas do lugar, nem pacíficas nem ameaçadoras, avançam para mim… na praia, a observá-las.
Vêm de longe sobre a água, com o sol todo do meio-dia a luzir nelas, em pedaços de espelhos de formas e tamanhos vários.
Avançam em diagonal, por isso, não têm força para me derrubar, chegam-me de rastos, (querem levar-me, vou com elas? Talvez fosse interessante, uma vida diferente!).
Elas vêm de muito longe, erguem-se o mais possível (parece-me), e com grande entusiasmo atiram-se contra as rochas, duramente e há muito, fixadas na areia aqui e ali, perto de mim.
E dissolvem-se.
Subitamente são espuma branca rendada que se expande e cobre tudo. E todo este mundo que observo na tarde de Outono fica brilhante e húmido e indefeso. Diferente. Limpo.
É quando olho o mais distante, a linha, o que será o horizonte, o fascinante limite que conheço entre mar e céu e que desejo ultrapassar, ver para além.
Descobrir.
É para mim o lugar do mistério, o espaço vazio ou em branco. O lugar do silêncio.
Admito: não estou cá, talvez lá.
Na realidade, não sou sequer daqui.
Ocupo-me durante algumas horas por dia a ver e a ouvir as histórias que os outros têm para contar, as histórias dos outros. Não porque me interesse a anedota ou o enredo, o romance, mas porque me fascina a linguagem - a forma como as palavras são usadas e as imagens escolhidas e montadas, as ideias, os pensamentos que lhes deram origem, os conhecimentos que revelam, as referências culturais…
As minhas histórias, as que vivo… ponho nelas a alma toda, são a minha realidade, o que me faz sofrer ou me dá prazer intenso, mas que é sempre, é entendido ser para deixar marca, para magoar. Nem sempre estou disposta.
De modo que as que me contam são muito mais importantes. Apaixona-me descobrir a forma e o porquê das escolhas do autor, os seus objectivos, que serão os de cativar os leitores e os espectadores, se foram atingidos e se o autor tocou um nível artístico ou moral que lhe permita pensar candidatar-se a um Oscar ou a um Nobel!
No caso do cinema ou da televisão, os longos programas que os mais jovens diariamente observam e absorvem podem ser extremamente sugestivos de violência, de maldades, de crimes de toda a ordem.
É lamentável que a grande maioria dos programas que clamam a sua atenção e que lhes é permitido verem sejam medíocres não na técnica que essa é perfeita, mas nas qualidades éticas dos conteúdos.
Para mim, há sempre o que vale a pena aprender: de um novo ângulo, com outra disposição, reparando melhor, um detalhe novo que pode já ter sido visto milhares de vezes… que acaba por ser insignificante… a que darei apenas a importância que merece.
É para não sofrer ou para sofrer menos ou para reflectir que prefiro assistir às histórias dos outros em vez de viver as minhas o tempo todo. Ou como intervalo.
No fim, ainda estou a viver a minha vida.
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