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Em Junho, tenho-me empenhado na busca da manhã de Verão deslumbrante de que falam os poetas.
E saí para a praia num dos últimos dias possíveis.
O mar estava todo de azul, de muitos azuis amalgamados ou confundidos com outras tintas, de modo a resultar uma imensidão colorida como nunca antes tinha visto. E não sei classificar: cores novas conseguidas no momento, irrepetíveis, segundo penso. Nada tão harmonioso e inesperado mesmo para mim que o contemplo todos os dias.
E o céu, diria, azul de diferentes tonalidades, misturas, combinações de grande mestre que não explica como o faz nem por quê, o que o orienta.
Não havia vento, nem chuva, nem sol, nem nevoeiro; não havia frio nem calor, nem mágoas nem espinhos… apenas uma serenidade, uma transparência, um silêncio ligeiramente musical… Graça? Talvez… não, não sei…
Uma beleza incomparável, sim. Um regalo.
Era isto que procurava, foi o que achei há poucos dias: o momento feliz de deslumbramento que aconteceu e não voltará a acontecer.
E que não sei imaginar. Uma imagem real está na minha memória, desconheço como se desenha e se pinta ou como se descreve.
Tenho andado arredada de escritas e de leituras por razões circunstanciais e, decerto, também fundamentais. Provavelmente, as circunstâncias ajudaram muito a…, quero dizer, tornaram-se subitamente fundamentais.
Talvez escrever não volte a ser tão importante para mim como foi.
No entanto, quero achar que nada morre assim tão bruscamente. A vontade de ler, o prazer de escrever, o poder fazê-lo, o empenhar-me nisso… permitia-me viver com algum gosto pelo que me rodeia e sobretudo pelas pessoas que me têm acompanhado e me dão o seu sorriso amigável e inspirador.
E penso nos meus habituais porquês que eram proveniência de buscas e de descobertas, e deram lugar a pensamentos com interesse e ao desejo de sempre enriquecer a inteligência e a sensibilidade.
É neste momento de um dia tão vazio que me interrogo com verdadeira preocupação. Tudo isso voltará…os meus interesses… o meu empenho? Ou desapareceu, consequência do acidente que me terá abalado para sempre, além dos ossos, o sistema nervoso?
Saio para a varanda, o sol declina e enche o mar de brilhos cintilantes. É 24 de Junho, um dia importante, neste lugar, um dia de festa. O céu é azul, todo pintado de nuvens brancas e transparentes, uma decoração feliz.
Fiquei insensível à poesia dos lugares?
Pela centésima vez, abro A Poesia do Pensamento e encontro, entre páginas, o recorte muito amachucado de uma crónica de António Lobo Antunes.
Sinto uma luminosidade excessiva na varanda, os óculos estão embaciados, não vejo nada bem, a letra do jornal é miúda de mais... Os patos em cima da mesa rebrilham e perturbam.
Mas esforço-me por entender. Ele fala com mestria e minúcia de um mulher estrangeira pedinte suja e sem abrigo, das suas atitudes, do penteado, das roupas, dos sacos de plásticos nos braços – nós a conhecemos muito bem.
E doutro grupo de mulheres de madeixas pintadas, toda a tarde na pastelaria em volta da mesa do café, falando dos lugares de férias dos famosos. E da astróloga que conhece esses homens de uma só palavra, diz Lobo Antunes, que os ouviu como todos nós ouvimos: “Há que levantar a cabeça e pensar no próximo jogo”. Toda a vida se resume nesta frase penetrante!
É verdadeiro, divertido… miserável!
No entanto, a crónica avança. Para mim, presentemente, termina ali onde se fala do Sr. Mário e de como passava fome para alimentar luxuosamente o gato Baixinho, morto à vassourada por alguém muito perspicaz ou precavido ou não sei o quê, um dia passado qualquer.
Eu só encontrei no livro do Steiner uma página de recorte, mas seriam duas, deviam ser duas.
Vi bem que a crónica persistia, não terminava a meio da frase.
Que feitiço me ligou desde sempre à Casa da Eira?
A casa chamada nos meios académicos Casa Alcino Cardoso e para o turismo de Habitação Casa da Eira de Moledo do Minho foi reconstruída a partir das suas ruínas de um século segundo um projecto do Arq. Alvaro Siza.
A ideia foi fazer dela um casa de praia e de férias para os novos proprietários que a adquiriram copiosamente abandonada a uma dúzia de herdeiros vivendo há muito em longes terras e, por certo, ignorantes mesmo da sua existência.
A persistência de Alcino Cardoso e o seu desejo de renovar, reconstruir ou fazer de novo, “deixar obra feita”, deu origem a esta construção feliz, motivo de orgulho de uns e de gozo, de contentamento e de prazer de outros.
No lugar, chamado da Gateira, havia duas casas muito modestas, onde as silvas e as austrálias proliferavam, no seu interior, quero dizer, e sobre os muros. Havia uma ramada de uvas americanas muito cheirosas e duas ameixieiras encantadas monumentais e obviamente suspensas porque surgiram, na primeira visita, na nossa frente de surpresa sem apoio, oferecendo grandes frutos dourados brilhantes pendurados nos ramos e derramando um suco doce e fresco e rebuscado ao menor toque na sua pele entumecida.
Apaixonei-me instantaneamente pelo lugar e nunca mais me desapaixonei, o mesmo acontecendo com todos aqueles, de algum modo, sujeitos à minha influência e que passaram a frequentá-lo.
Já escrevi muito sobre o trabalho realizado há 45 anos por Álvaro Siza nas pequenas casas rústicas no lugar da Gateira algures no Minho. Porém, há uma coisa importantíssima que só hoje descobri e sobre que lhes quero falar.
O pedaço de terreno que rodeava as casas era minúsculo e nós, a família, queria uma piscina. Álvaro Siza não teve nenhuma dificuldade em realizar o programa que parecia de todo impossível para a exiguidade dos espaços – e mandou cavar o furo para a piscina. E não imaginam a montanha de terra que daí resultou e que aparentemente não se podia colocar em lado nenhum do planeta… nenhum!
Porém, o Arquitecto soube logo onde a colocar. A terra foi espalhada por ali de maneira engenhosa, criando o actual movimento do terreno com altos e baixos e belos muros rústicos de suporte. Os muros são paralelos à casa e também perpendiculares alguns e permitiram conservar velhas árvores cheias de vida e plantar novas árvores de frutos, arbustos e flores respeitando o espírito do lugar, quero dizer, de forma incerta, informal e natural.
As pedras são velhas e artisticamente colocadas para erguer os socalcos de modo que pareçam ter nascido ali – obra amorosa do Sr. Floriano, artista pedreiro, homem pensativo e bom a quem rendo homenagem.
O que é mágico aqui é o lugar, todo o espaço que inclui a casa e o jardim: as plantas com as suas cores e formas e perfumes, as sombras, os brilhos e as transparências; as elevações, os movimentos, as irregularidades são a beleza “natural” do sítio. Uma natureza criada pelo génio de Álvaro Siza ajudado pelas habilidades de alguns outros.
A Casa é… para viver fora…
… onde há silêncio para reflexão e agora também recordações…
…arca perdida do paraíso encontrado, carregada de coisas preciosas e raras como sons macios e confortáveis, perfumes singulares, obscuridades muitas vezes com luminosidades insólitas, frescura e calor suficiente, e pensamentos sobretudo pensamentos que me têm permitido sentir-me próxima de mim. E pensar nos outros.
Este é o lugar que elegi como minha morada natural.
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