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De vez em quando, volto aos desenhos da Paula Rego.
Há anos vi no CCB uma grande exposição de trabalhos da artista que me cativou profundamente. Vi outras depois, a belíssima retrospectiva do Museu de Serralves que visitei várias vezes…
Continuo fascinada pela intensidade das histórias que conta, pela violência das histórias que os seus desenhos contam. Há pouco, adquiri um livro com várias entrevistas feitas ao longo de alguns anos por Anabela Mota Ribeiro que muito bem informam sobre a artista.
Reproduzo algumas linhas da introdução.
“Há em Paula Rego uma brutalidade sem filtro. Uma sensibilidade e uma inteligência finas. Um gosto pelos vestidos, o sangue e a fantasia. Como no verso de Amália: ”Se o meu sangue não me engana, como engana a fantasia.”É à vez o anjo da guarda e o anjo vingador, armada de esponja e de espada. É à vez uma adulta medrosa, uma criança curiosa.
“O maior problema, toda a minha vida, tem sido a incapacidade de me exprimir frontalmente – dizer a verdade. Os adultos tinham sempre razão: a menina ouve e não responde. Responder, contradizer era a morte, era cair de repente num vazio terrível. Esse medo nunca me há de deixar; vêm daí os disfarces infantis, os disfarces femininos. Menina pequenina, menina bonita, mulher atraente. Daí a evasão de contar histórias. Pintar para combater a injustiça” (Conversa com John McEwen).
Por muito interessante que devesse ser olhar para o interior de mim… não é; apesar de pensar que pode ser importante e mesmo extremamente valioso.
Apaixonei-me há anos pela possibilidade de descobrir o funcionamento do cérebro que julgo responsável pelo pensar. Portanto, para aí me voltei e volto.
Lembro-me que alguém disse ou escreveu – “sem cabeça, o corpo é vão”. Um poeta, com certeza. E um professor de Português deu esse tema num qualquer complicado exame escrito ao grupo de menores de quinze anos a que eu pertencia. E, cada um do grupo, teve de redigir uma composição em duas horas de concentração máxima.
Na verdade, não sei o que escrevi ou se o professor ficou animado com o que recebeu. Mas nunca mais esqueci a cena (o espanto e a dificuldade do tema inteiramente inesperado) que de vez em quando recordo e tento adivinhar porque não recordo, qual teria sido a minha abordagem. E qual seria agora a minha abordagem. Poderia pensar que se o corpo é vão sem a cabeça também a cabeça não servirá de muito sem o corpo. Muito prosaicamente.
Não foi de certeza nada disso que me aventurei a compor nesse dia, eu era razoavelmente responsável e queria satisfazer o professor - muito inteligente e culto e merecedor da atenção que também lhe dispensávamos. Ele esforçava-se por nos fazer entender alguma coisa, digamos, um pouco fora do comum.
E acho que cada um dos seus alunos ficou a querer ver ou diligenciar ver para além do que é mostrado. Sempre para além, um pouco ou um muito, conforme as nossas faculdades. Eu sabia decerto o que ele queria e o que esperava que nós, seus alunos, expressássemos nas nossas escritas.
Modificou-nos para sempre.
De maneira que concluo: quis, quis muito, estudar o modo de funcionamento do cérebro e do que nos leva a pensar. Gostava de basear-me em análises e observações, estudos recentes de cientistas que estão a fazê-lo no presente com muita convicção.
Mas…
É muito mais claro olhar para fora e de preferência para o longe. As coisas, todas as coisas (objectos, factos, acontecimentos) ganham outra dimensão, a distância torna-as mais reais ou mais compreensíveis num contexto de mundo.
Posso ver os montes com os vinhedos do Douro em patamares ou com socalcos tradicionais e um rio que serpenteia ou dança aos seus pés dando a tudo um ar de transcendência. Ou posso avistar outro tipo de colinas e montes, básicos, menos coloridos, menos desenhados e esculpidos e muito menos graciosos.
Permito-me observar o mar, os barcos, as gaivotas, o céu e o desenho delicioso de nuvens brancas ou rosadas quando as há. As ondas azuis que rematam com rendas de Bruxelas contra as rochas. E as rochas metamórficas ou afloramentos que não me atrevo a pisar porque são metassedimentares dobradas associadas a gnaisses precâmbricas e paleozoicos, portanto, julgo, com 500 milhões de anos, mais ou menos (desculpem me os especialistas se não for bem assim), e veneráveis.
Miro a revoada de pássaros gozando no espaço tão invulgarmente azul, ou lilás, ou cor de rosa, ou dourado, perto de onde me encontro ou muito longe.
Enfim, passeio feliz na avenida, neste dia brilhante de Inverno, admirando o sol fresco que reluz em todos os lugares, todos, mesmo nos carros ruidosos que circulam e poluem.
Disporei com estes elementos um cenário de que participo, que me encante para além de tudo e me faça esquecer a necessidade de estudar o entrelaçado mecanismo interno da minha cabeça e das outras cabeças. Será um cenário que sei me dará e dá um prazer enorme, e nunca me cansa.
O processo de pensar… que me importa como?
Não tenho dúvida de que é isto que quero fazer na vida.
O que vejo da minha janela é uma vastidão, dizem.
É, com certeza, uma quantidade extensíssima de água – um lago – rodeado por qualquer coisa que a retém e que não tento descobrir. Não sei se é uma vastidão.
O que não deixa a água transbordar são os seus limites a toda a volta, longínquos dos lados, próximos na minha frente. E, por cima, sem lhe tocar, um céu que me parece imenso repete as suas cores. Ou é o lago que duplica as cores do céu.
Há muitas realidades que ainda não conheço. Acho que pode ter um milhão de pétalas de peónias cor de coral dissolvidas e outras cores do arco-íris que nem sequer presumo de onde ou como lhe vêm. Ao lago. E brilhos. Sempre lhe vejo brilhos mesmo quando não há sol.
Acho que Deus confecciona estas mesclas e combinações há tantos anos que as faz cada vez melhor.
O lago ou o que seja está tranquilo com um ligeiríssimo ondeado apenas, que lhe dá um tom mais carregado aqui e ali, às riscas em diagonal, e só contra as rochas se transforma em espuma de renda branca e finíssima, a terminar.
Em certas ocasiões, avisto barcos mas são pequenos e não chegam a obstruir coisa nenhuma que eu queira ver. E as gaivotas passam rapidamente de modo que, com grande pena minha, nem participam desta cena. Eu gostaria de convidar mais gaivotas a galhofar por ali.
Algum dia, saio da janela e vou passear e vejo o mar entre os ramos retorcidos das árvores toscas da Avenida. Ou aproximo-me mais, piso a areia grossa e picante pelas conchas partidas dos mexilhões e das ameijoas...
Quando o céu já não é colorido mas negro, e tudo o mais é negro, o que acontece ao fim de qualquer dia, mesmo que haja luar, descanso de contemplar e de descobrir. Por vezes, bastante mais tarde, dou conta do luar muito luzente e levanto-me e vou espreitar. Fico tranquila, tenho ficado sempre tranquila.
Porque ininterruptamente tem acontecido deste modo, desde que me conheço, sei que tudo aquilo que descobri hoje estará lá de manhã, amanhã, para mim com variantes de cores e de movimentos - outras misturas, outras tonturas talvez
Mas reconheço que… pode não ser assim.
Para dizer a verdade, isto preocupa-me: que farei se um dia não amanhecer?
HOJE É INVERNO E HÁ LUAR!
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