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Sobre o livro “A Rua do Paraíso - recordações de um lugar portuense (1935 - 1950)". Texto de Helder Pacheco.
“ Retomando a tradição da escrita oitocentista relativa a uma rua do Porto, o texto abrange uma época que, embora próxima de nós, está praticamente ausente da memória disponível sobre a vida contemporânea portuense nas décadas de trinta e quarenta do século XX.
Nesta conformidade, o trabalho corresponde à abordagem sociocultural de uma rua até hoje nunca estudada ou divulgada, com base numa estrutura de reconstituição memorialista do período abrangido, sendo de relevar o tratamento formal dos assuntos em termos literários. Acrescem ainda os factores afectivos ou sentimentais (e, conforme António Damásio, não são as emoções instrumentos de conhecimento tão essenciais à vida quanto a razão?) que impregnam a narrativa dos acontecimentos e a evocação dos tipos humanos ligados ao quotidiano da rua do Paraíso.”
A propósito da reedição do meu livro A Rua do Paraíso pela editora Afrontamento, a ser apresentado brevemente.
Eu descobri isto. Atribuo-me todo o mérito da descoberta. Se bem que saiba que mil pessoas o descobriram antes de mim.
As pessoas gostam de estar sós… quando têm companhia.
A mim, ficam-me rumores de vozes, de conversas entre outros… com outros.
Conversas longínquas que não recordo. Lembro ecos, apenas.
Alguém vai entrar, vai comunicar qualquer coisa. Este silêncio é inaceitável. Vai ouvir-se um ruído. Qualquer.
Não é possível, mas tudo continua em silêncio, tantos espaços vazios, paredes brancas a toda a volta…
Para além dos muros… a vida acontece, os ruídos multiplicam-se. Lá fora.
Aqui … nada. Os movimentos, os cheiros… a luz e a sombra, o frio e o calor… apenas para além dos muros brancos.
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É uma pena termos um cérebro grande e tão complexo se o usamos tão pouco. Usamo-lo sobretudo em pensamentos básicos como os que ocorrem a qualquer ser de cérebro pequeno. É um desperdício.
Steiner chama “o palrar ininterrupto do quotidiano” e “o refugo e o lixo da nossa corrente mental” o que pensamos de manhã à noite, todos os dias.
Diz ele, mas talvez não seja tanto lixo como isso, desde que nos permita sobreviver. Temos que pensar como conseguir o que nos facultará subsistir. Pode não ser simples.
Levo muito em consideração a opinião dos outros, presto atenção ao que dizem, dou importância... Sobretudo respeito a sua inteligência e a sua dignidade. Às vezes, a inteligência (a quantidade, é o que quero dizer, que pode ser superior ou inferior) que eu julgo existir neles, essa ideia, esse meu julgamento não corresponde visivelmente à realidade, de modo que as relações se desmoronam.
Os outros são diferentes. Diferentes de mim e entre si. Como estabelecer uma ligação com eles? Com cada um deles, sim, claro, é possível. Uma ligação com o conjunto deles? Muito difícil. Mas é isso que é preciso, por vezes, e em momentos de importantes resoluções. Como poderemos chegar a acordo alguma vez, se quisermos resolver um problema interessante para o grupo? De modo a que todos fiquem felizes?
Talvez elegendo para arbitrar alguém absolutamente fora do circuito, com grandes quantidades das duas inteligências indispensáveis: a do coração e a da cabeça.
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Voltando à questão de pensar e de não pensar, lembrei-me que naqueles períodos em que aparentemente não estou a pensar, talvez esteja realmente a pensar, sem contudo saber transformar em linguagem o meu pensamento. (Não estou a inventar nada). Portanto, também é como se não pensasse.
Pensar será transformar em linguagem o que… o quê? Não me posso recordar do que pensei se não o tiver transformado em linguagem. Então talvez o ser humano não seja o que pensa mas o que recorda e é para recordar que precisamos de linguagem. Isto é que é importante. Para contarmos a nós próprios o que pensamos, o que nos vai… (onde?) no cérebro. Na cabeça, talvez.
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Julgo não ser capaz de ler os pensamentos de outras pessoas à medida que lhes ocorrem e quando estou a dialogar com elas. Mas sou ou posso ser capaz. Apenas não sei verificar se estou certa ou não, se o que eu penso que eles estão a pensar é o que realmente estão a pensar. Quero dizer, se o que eu penso que é, é o que realmente é.
Isto, claro, nos seus relacionamentos comigo, nos meus relacionamentos com eles, com outros. Nos diálogos surdos e nos falados entre nós. Saber o que dizem é uma coisa, saber e compreender o que pensam pode ser muito diferente. O que dizem pode e deveria traduzir o que pensam, mas raramente acontece. Que tipo de diálogos é possível estabelecer? Muitas, muitas considerações interferem e o que nasceu para ser simples… deixa de ser.
A observação de gestos e de tons de voz ajudará, assim como o conhecimento mais profundo dos intervenientes, do tema e da história do mundo.
Costumamos dizer e ouvir dizer que pensar dá muito trabalho, e que as pessoas em geral não gostam de pensar. Assim não apreciam ler porque ler dá que pensar. Preferem procurar entender a imagem: é mais simples e divertido. Daí o êxito do cinema, da televisão, dos cartazes, da banda desenhada…
Porém, o que dá mais trabalho e é difícil, verdadeiramente sério, é não pensar. É fácil verificar isto. Não podemos estar sem pensar, não nos é permitido parar de pensar nem neste momento nem por um momento. Isto é um dado adquirido.
No entanto, e é esta a novidade, ultimamente tenho conseguido parar de pensar por tempo que não sei bem definir. É verdade que não posso garantir que não estive a pensar nesse tempo em branco, não posso, mas também não garanto que estive a pensar. É um tempo em branco em que não me lembro de nada, de absolutamente nada de como passa. O que sei desse tempo e, portanto, não é assim tão indefinido, é que passou, passou e posso verificar (no relógio, nos astros…). Mas se não recordo absolutamente nada do que poderia ter estado a pensar, então é como se não tivesse estado a pensar. É exactamente o mesmo. É nada.
Se não olho e não vejo, se não sinto nada – não cheiro, não tateio, não saboreio, não ouço - não posso dizer que isso existe. Não posso dizer que o mundo existe se nenhum dos meus sentidos me diz que existe. A menos que eu não exista, e isso é delicado dizer.
Todavia, pensar é decerto o que fazemos mais, não digo melhor. Digo com mais frequência. E, por mim, gosto de o fazer. O que será difícil é viver doutra maneira porque será não-viver. Como poderei ter a certeza de que existo se não pensar, se me mantiver por longo tempo sem pensar? Pelo menos, durante esse tempo, não existo, é o que julgo. Não sei se me interessa ter a certeza de que existo.
É-me muito difícil pensar que existo até ao momento em que deixo de pensar, e voltar a pensar que existo no momento em que recomeço a pensar. E não existir durante aquele período vazio. Um dia destes vai acontecer que não recomeço.
Deste modo, acho que não pensar é bem mais complicado do que pensar. Não pensar é cheio de consequências desagradáveis. Prefiro pensar e saber onde me encontro, mesmo que não saiba para quê.
Nos últimos dias, a nossa vida encheu-se de acontecimentos muito emocionantes, desde a eleição daquele presidente ao desaparecimento de figuras e de pessoas a quem ao longo dos anos muito admiramos e estimamos.
Em tempos românticos era na Primavera que as pessoas, com doenças que se prolongavam, morriam. Ou seria no Outono, muito mais apropriado?
Leonard Cohen é de quem quero falar enquanto é Outono.
Sabia que era muito estimado, venerado, pela geração que se seguiu à minha. Nunca me tinha apercebido de como a sua música teria sido importante para mim se a tivesse verdadeiramente conhecido.
Agora, desde há uma semana - que a oiço quase ininterruptamente nos meios adequados e na minha cabeça, vejo como é valiosa.
Soube neste momento do desaparecimento de Miguel Veiga, uma das pessoas mais interessantes com quem tive ocasião de privar, que sempre estimei e admirei, um portuense ilustre, de avós de Moimenta da Beira, tal como eu. O livro Ana Augusta - que é a historia da minha bisavó ali nascida e onde viveu a sua juventude invulgar, mereceu da sua parte um texto admirável de apresentação.
Escreveu e disse na nossa terra comum um texto invulgar que nunca esquecerei nem o seu ilustre autor.
Há os que não sentem o apelo do transcendente
que “vivem” num lugar determinado
e não abrem o olhar para o longe…
que não procuram “um país inocente”.
Trabalham de olhos na terra e não têm tempo
não prezam o sabor do sol
não conhecem os nomes que falam de amar
não gritam, não cantam, não se despem nunca.
Não enxergam as uvas em cachos verdes
na ramada a frescura do vento o espaço
dançando aberto e cheio de perfume de algas
e de mel do favo.
Não vêem as luzes da bruma da manhã
pousadas nas árvores ou a boiar na água
não ouvem a vibração do mar distante
não procuram captar o NADA,
o centro imóvel do mundo, o secreto absoluto.
Nada sabem de eterno retorno, de formas
de palavras tão leves que não magoam o silêncio.
Não se sentem nunca respirar em uníssono com o universo.
Cegos, mudos, surdos, insensíveis às presenças intocáveis
trabalham de olhos na terra e apontam só os vermes
os buracos, as pedras escuras, as ervas secas
e o que está por-fazer.
Às vezes, perguntam-me se sinto nostalgia do paraíso.
Suponho que se referem a este paraíso de que falo no meu livro, mas possivelmente também ao outro, ao que se escreve com maiúscula.
Vem a propósito, agora que vai ser reeditado “A Rua do Paraíso”, vem a propósito saber o que penso de ambos e se gostaria de lá voltar (no caso do primeiro) ou de o conhecer (no caso do outro).
Nostalgia do Paraíso será o desejo de cada um de nós de se encontrar sempre e facilmente no coração do mundo. Que é o espaço sagrado, acessível e inacessível, único e transcendente, ambivalente e repetível sem fim, símbolo de imortalidade, labirinto. Tudo o que podemos imaginar de perigoso e útil, atraente e repelente, belo e guardado por monstros… eu sei lá.
Sim, se não tivesse medo, gostaria de o conhecer.
E há a nostalgia deste paraíso que me é familiar, que não tinha nem tem nada de sagrado, na minha opinião, mas que se tornou para mim, com o tempo um lugar sagrado, mítico.
Não gostaria de regressar ao lugar que já não existe, de resto, mas sempre quero voltar àquele que se encontra guardado na minha memória e que será mais o que inventei sem querer inventar, sem ter qualquer intenção de forjar ou de compor fosse o que fosse, do que o que alguma vez existiu. A esse voltaria sempre, ao paraíso da minha lembrança.
A nostalgia dele existe em mim enquanto metamorfoseado pela imaginação e pela sensibilidade em verdadeiro Paraíso.
E como aconteceu e acontece sempre com todos os paraísos, quando me libertei deste e emigrei para outros lugares, senti-me verdadeiramente punida: liberta e presa para sempre.
Aquele lugar era realmente único.
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