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Nos nossos dias, há quem considere ser sensato não nos habituarmos a coisa nenhuma. Quero dizer, não ganharmos hábitos.
Os hábitos adquiridos constituíam, no passado, um património cultural da maior importância. A tradição, a rotina, os costumes… Por isso, adquirir bons hábitos era fundamental na nossa vida disciplinada e estável. Incluía hábitos de moral.
Deixou de ser.
No presente, devemos habituar-nos a mudar rapidamente de usos, de atitude, de comportamentos. Os nossos valores não são estáveis pela razão de a nossa sensibilidade e os nossos reflexos terem mudado radicalmente. E assim as nossas capacidades. A maneira de estar no mundo e de viver é diferente do que era não há muito.
Ia dizer, neste tempo - da nova e da novíssima geração - tudo é diverso do anterior. Mas não há divisões estanques entre as gerações e alguma coisa de uma geração passará para a seguinte. Sucessivamente. A maneira de viver altera-se em permanência (os altos e baixos não coincidem com as gerações) e isso é que será a verdade ou o mais próximo dela.
São dados da experiência.
E a arte contemporânea, se quisermos falar na arte contemporânea, com as suas contínuas propostas, por vezes, terrivelmente inovadoras, revolucionárias, tem-nos ajudado a aceitar este estado de coisas, a compreender e a admitir um mundo continuamente em mudança. A arte consegue melhor, porque é encantadora e fala aos sentimentos antes que à razão. Ela própria se constrói com valores. E ajuda-nos, seres humanos, a integrar-nos na nossa cultura - do nosso tempo, do nosso lugar - e a evoluir no que respeita a mentalidade. E a possibilidades.
A arte parece progredir ao ritmo da ciência, acompanha a cadência do seu desenvolvimento que, desde que admite o erro e deixou de considerar-se como sinónimo de pura verdade, passou a crescer implacavelmente mais.
Tem sido dito inúmeras vezes: nada é definitivo, perfeito, acabado, permanente. Há insegurança e instabilidade em tudo, sem dúvida. Mas é isso o que nos permite continuar a descobrir e a imaginar.
Quando hoje olho fascinada para esta paisagem que é simplesmente um rio no seu extenso estuário e a ribeira que ali tem a foz com a reserva natural de aves muito perto, interrogo-me sobre como é possível que tivesse tido conhecimento disto há meia dúzia de anos apenas. Nasci na cidade e não conhecia!
Observo o que me emociona - o casario avermelhado do outro lado do rio e o seu reflexo na água, a elegantíssima ponte branca emblemática, as gaivotas e os pombos que subitamente levantam voo em alvoroço ou só para se divertirem… e quero ser capaz de dar aos outros uma ideia do que sinto para que apreciem o lugar, para que o amem, como eu própria o amo, desde então.
Antes passava por aqui a caminho de casa ou da cidade e não reparava. Não sabia que encontraria, se prestasse atenção, garças-reais, corvos-marinhos, garças brancas, guarda-rios, piscos-de-peito azul, maçaricos-das-rochas, rolas-do-mar… coisas exóticas que afinal não são - vivem aqui uma boa parte do ano. Já lá topei flamingos cor de rosa, presenciei-os repetidas vezes no mesmo ano, mas não voltaram.
Alguém um dia me avisou e nunca mais deixei de ir visitar estes amigos. São parte da beleza da cidade.
É-me possível escrever um texto sobre este tema, um texto em que descreva o sítio com a exatidão possível, que informe sobre ele.
Ou um para o qual procuro as palavras e a técnica adequada à mostra das minhas sensações, aquilo que disser mais da minha emoção e do meu entusiasmo, dos meus valores. E que o diga de maneira, original e estimulante.
Fico satisfeita se conseguir... para que amanhã toda a cidade esteja no Jardim do Calem a apreciar perfeições e a partilhar emoções.
E porque não sei desenhar nem pintar nem fotografar com arte, o que facilitaria o trabalho de quem procura compreender e comover-se, tentarei construir um texto literário com as características da obra de arte.
Na ocasião em que o contemplo, o rio brilha com o sol a dar-lhe quase a pique, cintila numa grande extensão como uma estrela, o céu é soberbo assim riscado de cinzentos que formam desenhos provocatórios no azul. Gaivotas repousam às dezenas no seco agreste do meio da água, gozando o calor da tarde de fim de Verão. Ou talvez deliberem sobre como viver melhor por estas bandas.
Mas não, nada disso, elas não disputam em silêncio: estão em meditação!
Barcos à vela e alguns com motor, uns de passeio e outros de trabalho passam movimentando a água, descompondo os brilhos. Ou ficam ancorados. Na outra margem, há a marina com boas embarcações e muitos mastros. E os reflexos dos telhados e da floresta - tudo o que torna o rio mais escuro daquele lado.
Não consegui, claramente, isto não é bastante. Em que é que esta experiência de contemplação me modificou interiormente? Nada, nada, ou está mal explicado. Parece um retrato sem imaginação.
Tenho que pensar para além do óbvio. Que posso mostrar para lá do que é visto a frio, a olho nu?
Faltam muitos detalhes para que esta linguagem seja conotativa e o texto literário e comovente. E sugestivo, quero dizer, partilhável em termos de sentimentos e de símbolos.
Falta talvez inspiração, seja isso o que for.
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