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Uma história de renovação

por Zilda Cardoso, em 27.07.16

Histórias de renovação são sempre interessantes. Por isso, presumi que esta fosse.

Pensei: como estimamos o novo, o diferente, o moderno, o fresco que se tornou sinónimo de aprazível e de ameno! E, por vezes, é quase questão de sobrevivência. Como o estimamos!

E como desestimamos o velho!

A este propósito, não posso deixar de pensar na dificuldade de continuar a remediar, a reajustar, a remendar; em reconstrução, em renascimento, em transformação. Será que em algum momento pode haver uma decisiva mudança?

Estou enganada, mas… não resisto à tentação de contar esta insofismável renovação.

Assim, alguém com olho vivo viu que a minha licença de condução tinha caducado havia mais de três anos. O que me passou pela cabeça, quero dizer, antes desta oportuna intervenção? Ou o que não me passou pela cabeça… de forma tão radical?

Não sei, não sei, não sei dizer!

Fiquei atormentada.

Sinto-me perfeitamente bem a conduzir, não haverá lugar para uma alteração categórica. Apesar de o processo poder vir a ser delicado.

Tive que dar várias e complexas voltas na cidade até conseguir uma guia fotocopiada, cinzenta e difícil de ler, mas que iria permitir-me conduzir. Pelo menos, até ao momento de fazer um novo exame de condução que me asseguraram ser tão rigoroso e difícil como da primeira vez.

No entanto, ainda posso reprovar e repetir, é-me dada uma segunda oportunidade. Senti-me muito privilegiada.

Talvez em Outubro, possa ser feito esse exame de pôr-os- cabelos-em pé. Até lá, vai haver ocasião de treinar todos os esses e erres dum diploma desta importância.

O facto de nunca ter tido acidentes, não abonará a meu favor: só alguém destituído de graça pode não ter acidentes durante 50 anos.

Há coisas bem estranhas!

Fui a várias repartições públicas e privadas e, com espanto, constatei que desde o médico ao porteiro, todos são em absoluto conhecedores de nova realidade cultural e social. Atendem como quem quer ajudar, pedem ideias uns aos outros e nunca exibem carrancas, como noutros tempos, em que pareciam querer enterrar os pobres solicitantes de atenção.

Eles agora ajudam e sorriem. E explicam e fazem coisas fascinantes.

Não me tinha apercebido, ganhei o meu dia. Na verdade, dois dos meus dias, à conta desta renovação. Valeu a pena.

E gostei de ver que o mundo não se incomodou muito com tudo isto que me pareceu de importância transcendente. Acabam sempre por acontecer coisas a mais, coisas e loisas. E outras que tais.

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publicado às 22:32

o bolo da avó

por Zilda Cardoso, em 21.07.16

 

 

Havia a questão do bolo, que era enorme. A questão, claro, não o bolo.

O Bolo... era o bolo da avó que ela confeccionava  e oferecia quando havia festa em nossa casa. E mesmo quando não havia. A partir de certo momento na sua vida e na nossa, quando nos visitava, trazia o bolo. O que aconteceu durante anos, quase todas as semanas.

O bolo era rigorosamente igual, como se fosse o mesmo, cada semana, cada ano, mas não era de todo igual porque a sua história era outra.

 A narrativa era o que lhe conferia valor, ele não era nada sem ela, por muito dourado e leve e simples… Mas estava longe de ser simples. E apenas fofo. E perfumado.

 A história era emocionante e diferente para cada um ou de cada vez e sempre que havia um novo, semelhante ao antecedente.

A massa era batida na mesma tigela, as gemas com a mesma colher de pau até ficarem brancas como o açúcar, e as claras, à parte, deviam ficar em castelo duro com um garfo. Tudo isto à custa de grande esforço muscular, nada podia ser executado com qualquer tipo de máquina ou instrumento complicado.

Os ovos vinham das galinhas da capoeira do quintal ou da vizinha. Mas, ai, por razões impossíveis de determinar, as claras não subiam como devia ser e as gemas já não eram o que tinham sido noutro tempo ou da vez última. A forma não se deixava untar da mesma maneira e o forno… que lhe deu ao forno?!... tostou dramaticamente aquele objecto com estatuto mítico.

Por tudo isso, a Avó não se responsabilizava pelo resultado ali à vista: algumas vírgulas tinham sido mudadas inesperadamente.

Quando nos sentávamos à mesa da comemoração e ouvíamos a narrativa, sorríamos uns para os outros com uma certeza: o bolo era tão maravilhoso como das outras vezes.

Descobri mais tarde qual o sentido de a Avó encarecer de tal modo as qualidades do bolo e as dificuldades da sua confecção: tínhamos que saber todos os detalhes para lhe compreendermos o valor. E sabermos o AMOR com que era feito e oferecido e a quem.

E que sabíamos nós? Parecia fácil!...

E algum de nós começava a cortar o bolo e a distribuí-lo com grande satisfação de todos.

Uma vez, um espertinho fez uma ousada batota, quebrando a solenidade do acto. Cortou o bolo por baixo com uma faca fina, de modo que ficou reduzido a metade sem que se notasse qualquer diferença: era obra de perito.

O bolo estava minado e meio-comido. A Avó, a princípio estupefacta, acabou por desculpar, apenas por que sabia quem podia ter sido o autor da façanha – o seu próprio e querido filho.

Foi uma galhofa.

 

 

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publicado às 19:10

Nada de nada

por Zilda Cardoso, em 10.07.16

DSC04135.JPG

Fomos concebidos e construídos de modo que a única coisa correcta que nos acontece é a morte. Tudo o mais está errado, é incerto, é falso.

Porém, a morte é grande inspiradora de vida melhor, mais conseguida e mais alegre.

E tem uma outra qualidade insuperável: não nos lembraremos de nada, depois. Penso que, pelo menos isso, é verdadeiro. Não nos lembraremos de nada, logo depois. De nada.

Estará mesmo terminada a nossa vida quando terminar.

Apesar de parecer inconcebível e inaceitável que após anos de lutas e de sofrimento, de projectos sedutores e difíceis, de sucessos e de desaires sem fim e também de enormes alegrias… num segundo, tudo se vai, ficaremos reduzidos a nada...

Estou convencida de que a grande compensação para a nossa vida seja ela o que for, tenha sido ela o que quer que seja, é mesmo esse esquecimento total. Quero dizer, o nada.

Esse NADA.

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publicado às 16:46

A poesia do FUTEBOL

por Zilda Cardoso, em 03.07.16

Fundamentalmente, posso ver o mundo de duas maneiras : uma com cores brilhantes como esta manhã de sol e rosas perfumadas, temperatura amena, velas muito brancas no mar calmo e azul… Outra pleno de sombras, humidade, vento irritante, frio… Ou ainda tempestuoso, com belos fulgurantes relâmpagos, trovões medonhos, chuva torrencial e… por aí fora. Até talvez uma onda gigante, como nunca se viu por aqui, avance pela praia até às casas mais próximas.

É sempre o mesmo mundo, a forma de o ver e sentir, depende da minha disposição e da dele. Porventura, de outras existências e influências.

É desse modo que a minha posição ou o meu humor depende do dele. Como vejo sempre tudo isto como obra inacabada e com espaços em branco que não sei definir, imagino milhares de outras formas diferentes de o encarar e classificar cada dia.

Assim é o mundo ou assim sou eu. Ou é o mundo para mim. Ou sou eu para o mundo?!

Porém, posso vê-lo como quem vê um jogo de futebol: um espectáculo que é mundo de emoção e de agitação,  de surpresas e de abalos. Embora no futebol, haja apenas duas hipóteses: ou ganha um ou ganha outro dos dois em campo. Cada assistente na bancada ou noutro lugar qualquer se liga fortemente a um dos contendores, emocionalmente, loucamente, apaixonadamente e nada o fará raciocinar com lógica ou com moderação. Isso é posto totalmente de lado e… compreende-se. Não tem que haver razões nenhumas, não é essa a ideia.

Aquele jogo recente entre Portugal e a Polónia merece a análise de um perito, é exemplar. Eu apenas participo da assistência, por isso, sofri até ao último segundo, como milhares de outros do meu grupo. Estive arrasada mas terminei feliz, ou como se designa aquele contentamento descontente.

Os polacos são tão simpáticos, custou-me vê-los chorar como miúdos a quem foi recusado, no último momento, um brinquedo sedutor. Mas preferi… a ver lacrimejar o Cristiano, apesar de pensar que o faria com elegância, ou o Patrício ou outro qualquer desses Grandes, novos heróis.

É divertido o entusiasmo geral e o interesse da população, mesmo dos intelectuais ou distraídos, mesmo desses, por um jogo bastante estúpido. Se bem que, como em tudo, ganhem os que têm mais capacidades específicas, não apenas físicas mas intelectuais de qualquer ordem: inteligência -  base da compreensão, da aptidão para a escolha, da interpretação, do pensamento -, a sensibilidade, o instinto…

Os jogadores (e os treinadores, entre parênteses) são poderosos e necessários para incertas catarses e promovem com regularidade a Festa Mítica tão necessária.

Eles sabem fazer o teatro de máscaras exacerbado que se espera, e que, por vezes, não passa de fita de má ficção. Os seus gestos desamparados, os reparos, as atoardas e as manhas, as invocações de olhos voltados para o céu, todas as exuberantes expressões que podem ser igualmente de alegria triunfante com qualquer coisa de vulnerável e é tocante, como quer ser, toda essa ostentação e agitação apaixonada faz parte do espectáculo a que temos o direito de assistir já que pagamos um bilhete caro de mais para as nossas posses. É o que leva a perdoar a possível falta de concentração, de gestos precisos e de habilidades essenciais, de empenho que levam ao fracasso… e aos pontapés nas canelas dos adversários.

Porque é preciso ganhar de qualquer jeito para que os adeptos fiquem satisfeitos e continuem adeptos: os jogadores ganham e são heróis ou perdem e são vítimas de injustiça. Nada mais importa, na verdade.

É isto poesia pura?

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publicado às 12:56




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