Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
A minha amiga Jean festejou o seu aniversário: acontecimento muito esperado cada ano e muito bem-vindo neste lado da cidade.
Como sempre, houve reunião meio de improviso lá em casa onde os amigos entram, prestam a sua homenagem, confraternizam de copo e salgadinho na mão e saem para entrarem outros.
Acumulam-se numa mesma sala e ninguém tem tempo de se aborrecer, há sempre pessoas novas, as conversas são ligeiras e estimulantes: é preciso dizer rapidamente a novidade que pode interessar.
Estão a ver? Nada de profundezas filosóficas nem obviamente de políticas. É um corrupio entre as 7 e as 9, muitos já não se viam desde o ano anterior, falam-se com entusiasmo.
Tagarelo do que é uma referência importante na cidade e sobre um tempo circular: o antes e o depois, o que acontece antes, o que acontece depois do aniversário da Jean.
Digo-lhes como é repousante ver que ela não fica sentada no trono a ser consagrada, reconhecida, aclamada. A cada instante, vem lá de dentro aureolada do branco brilhante dos seus cabelos, rosto radioso e olhos risonhos e… passa com os pratinhos na mão, por entre a multidão de amigos (que nunca sabe quantos são), oferecendo, oferecendo.… Ofertando sobretudo a sua proverbial boa disposição, o gosto de nos ver, o prazer de ouvir novas histórias e de contar as suas.
E traz os croquetes, especialidade da casa, e os maravilhosos rissóis pequeninos feitos com todo o requinte, quentes, quentes, acabados de fritar… Ela detesta cozinhar, diz. Como seriam os seus cozinhados se gostasse de cozinhar?
Não há sinais de fadiga, os seus gestos são expressivos e vivos. O que homenageiam estas pessoas tão diferenciadas pela nacionalidade, pela idade, pelos interesses? Acho que felicitam uma larga visão do mundo, e condescendência, bondade, sinceridade, firmeza que tudo isso é dela.
Uma mulher exemplar que não pára. Viaja para muito longe, se tiver oportunidade, e para perto, para Moledo, por exemplo, conduzindo o seu velho carro cor de vinho do Porto, garantidamente com pneus novos, quase todos os fins de semana de Verão e de Inverno. Isto se não houver um concerto atraente na Casa da Música.
(Talvez continue um dia destes)
Esta é a petite histoire do meu astro preferido que vejo a desaparecer no mar e a aparecer do outro lado do meu mundo, perpetuamente em movimento, com uma assiduidade singular, sempre afogueado, pronto a repetir tal volta, de cada vez como se fosse a primeira. Com a mesma pressa, quero dizer.
O Sol cai no mar ao fim do dia
como qualquer coisa que cai
Vê: o mar fica queimado
com tanto lume dourado.
Por esse tempo, o Astro,
pelo sossego da noite
e de mergulho no mar,
vai não sei para onde...
e regressa sobre a cidade
banhado, limpo, resplendente,
subindo, clareando o dia.
Como se segura no ar
até que cai de novo no mar...
por magia?
Ainda acontecem coisas novas e excitantes nesta beira-mar por mim calcorreada diariamente.
Imaginem: saí com um esplêndido sol sobre os ombros, o mesmo da cidade e sobre o mar. Estava quente em Dezembro, não importa que os meteorologistas estejam desde há tempos a ameaçar chuva e tempestades. É com eles. O sol e o calor aqui estão e temos de nos render a uma evidência muito palpável: são assaz saborosos.
E, se é assim, é porque merecemos.
Meti no bolso um mini-papel e um lápis e fui palmilhar mais uma vez a avenida.
Num certo momento, sentei-me no banco corrido de madeira quase ao nível do areal e escrevi sobre o telemóvel um precioso poema. Não foi fácil, a caneta, (não era lápis, afinal, embora continue rendida às vantagens do lápis) recusava-se a trabalhar nessa superfície deslizante e fria, polida de mais, e eu não tinha nenhuma outra maneira...e não podia perder a ocasião.
Depois de ansiosas e impacientes tentativas, consegui demovê-la, rabisquei o poema ao mar em palavras cheias de transparências, enigmas e metáforas. Já não tinha nenhum pedacinho de papel vazio quando o meti ao bolso e retomei o meu trilho, toda sorrisos, o sol a projectar a sua luz num mar tranquilo, transformado no jogo permanente de brilhos agitados e doces de todos estes dias.
Caminhei para casa, ansiosa por passar ao computador as palavras bonitas e as metáforas que me tinham surgido por milagre e, por isso, não iam repetir-se. Tinham um sentido, uma sinceridade... acolá perto do meu objecto de veneração, não podia mentir, dissimular, inventar… era uma linguagem natural.
Só que ainda antes de chegar a casa, revistei os bolsos e não encontrei nenhum papel azul! Tinha voado com o inexistente vento ou imaginei tudo aquilo? Seria o pássaro azul que passou perto de mim em direcção ao sul, o tal…?
O certo é que perdi o poema da minha vida laboriosamente construído à beira-mar como sempre desejei, num tempo brilhante como o de hoje: nunca mais o vi.
O que me custa é que, pela primeira vez no que me diz respeito, ele era uma obra-prima. Ainda estou a ouvi-lo, todo feito de intuições e de analogias, tal como me soa na memória (como acontece com aquela canção perfeita que escutei de manhã e continua..., embora não seja capaz de a reproduzir).
Ouço a música do poema, os pensamentos, o que suscitaria de emoções que estavam lá antes da linguagem existir…
Antes das palavras existirem
Porém, agora sem palavras não posso dizê-lo, como me tinham avisado pessoas muito inteligentes, essas palavras terão voado. Não poderei recuperá-lo nem perdoar-me a perda de momentos preciosos. No entanto, desfrutei-os.
Gozei o poema, mas sabem, talvez o goze ainda a um nível desconhecido porque o sinto.
Não sei dizê-lo.
Por isso, mas só por isso, não posso explicar-vos.
A civilização ocidental ou “a grande jornada do Ocidente”, como lhe chama G. Steiner, que terá começado com o milagre grego – a preocupação com a verdade e a valorização da razão - pode ter terminado com a descoberta de que não há nenhuma verdade a descobrir. E que a razão não produz nem certezas nem ideias claras.
Por isso, escusamos de nos preocupar, digo eu, com a invasão da Europa por muçulmanos e com a destruição que eles fazem dos valores que nos são queridos, das obras de arte e dos conhecimentos de que nos orgulhamos. As tentativas de descobrir a verdade que foram fundamentais para a civilização ocidental, acabaram há um certo tempo, não digo que desistimos.
Não desistimos de investigar e de querer compreender.
Entretanto e presentemente, vemos que a Verdade não tem a importância que os Gregos lhe atribuíam. Estavam enganados e nós todos, ocidentais, ficamos enganados por séculos. Porém, foi a sua atitude, a sua maneira de pensar e o seu gosto pela contemplação, pela reflexão, pela crítica que nos levou a descobertas e a invenções essenciais e actuais.
E a esperança de encontrar a verdade, que era a ideia base da ciência/filosofia no tempo clássico, estava há muito a decair, desde que a verdadeira ciência se foi transformando no valor primordial. É claro que vou afirmar que não há, nunca houve verdadeira ciência.
Pois não. As civilizações são provisórias como tudo o mais, o que quer dizer que são substituíveis; fundamental deixou de haver porque há “outros fundamentais”; todas as verdades são transitórias, admitem-se opiniões razoáveis. Manter o espírito aberto, viver em democracia e discutir em liberdade os assuntos que dizem respeito a todos é no momento o principal... (“O que é o principal”?). Coisas assim.
Estamos em vésperas de desaparecer, nós e as nossas ideias ocidentais, nada do que era importante… é.
Estaremos num ponto de ruptura. Apenas precisamos de esclarecer se devemos nós próprios destruir aquilo para que nascemos, se se impõe deixar que nos destruam com os nossos valores colados a nós ou se temos de esperar que as coisas por que vivemos se aniquilem por si.
E eu, branca caucasiana e ocidental exacerbada, começo a pensar que os muçulmanos talvez conheçam a verdade absoluta e estejam possivelmente dentro da nossa estimada razão. Eles! E só porque querem a mudança para nós.
E interrogo-me: as mudanças são necessárias? As verdades são provisórias?
Há que alterar? Alterar pode ser corrigir… e ir além?
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.