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Nunca falo na situação política do País, por diversas razões.
A principal é que não possuo conhecimentos que me permitam sequer pensar que estou a ver claro, seja o que for e de que perspectiva a veja, no âmbito das acções políticas de quem quer que seja. Como poderia classificá-las e falar delas?
Depois há o cansaço, o cansaço imenso que resulta de ouvir, de ver, de ler sobre o tema com tal intensidade, frequência e vacuidade que fosse o que fosse que dissesse se perdia de todo no ambiente geral profundamente negativo. Seria submersa pelo resto que é tudo e continuaria a ser.
Com isto, o que quero dizer, é que o ruído dos noticiários, das análises e das críticas é de tal modo atroador que mais facilmente seria esmagada pela violência do palavreado que dizem alto e sem sentido ou com sentidos tendenciosos e motivações que nada têm a ver com os interesses gerais e comuns do que me faria ouvir.
A televisão, meio privilegiado de informação e de formação, assume-se diariamente como entretenimento com uma função específica arrasadora – transmissora de tudo o que há de mesquinho no humano em termos de ideias e de acções.
Pensava eu e muita gente que o que diferenciava o homem dos outros animais era o facto de o homem ser o “animal que fala”. Fala e escreve, acrescento. Atualmente fala e escreve de mais. Tão de mais que já deixou de ser humano, provavelmente, para ser uma outra forma viva ainda indefinida.
Fala de mais, diz o que prejudica a causa comum. Prejudicaria a causa comum, se a houvesse. Mas já não há. E ninguém pensa no que não há, por isso, ninguém pensa em causa comum. Não percebemos o que possa ser o bem comum. E no entanto vivemos em sociedade.
O que se tornou extremamente confuso, no meio de toda o circo cacofónico que nos rodeia de manhã à noite (sem querer ofender o circo moderno que é uma forma encantadora de encantamento).
Para os seres vivos, nada é simples. E para os seres de cérebro grande e complexo, a forma de ver a vida e de a entender é muito complexa.
Penso que um dia os humanos hão-de compreender, mas apenas quando o seu cérebro tiver o tamanho conveniente. Aí terão uma possibilidade de entender, se quiserem aplicar-se com discipina. E se…
A verdade… é que vai continuar a ser muito complicado por muito tempo ainda.
Sabe-se que o ser humano terá uma estrutura psíquica cada vez mais complexa, isso tem-se verificado, de modo que, cada vez somos mais capazes de engendrar organizações sociais complexas.
Acho que o que está a acontecer em Portugal é um pôr em causa constante do regime político que escolhemos para nos governar: a democracia. É grave.
No entanto, talvez seja a ocasião certa para pensarmos numa organização já extirpada dos erros que cometemos, mais adaptada ao que queremos que seja a nossa vida. Já analisamos, já criticamos e apontamos os erros, já demolimos… será ocasião de construir.
Quer dizer, com os problemas dissecados, estamos aptos a seguir em frente. Temos um objectivo claro traçado, estamos a estudar e a experimentar para conseguir atingi-lo sem atropelar ninguém, mais ou menos como fazem os treinadores de futebol.
Porém, podem surgir surpresas no que respeita ao desenvolvimento dos sistemas vivos, dos cérebros e da sua complexidade, que é nisso que se baseia a nossa esperança de mundo mais aceitável. Como podemos ter a certeza de que vamos melhorar o entendimento do mundo e da vida com a complexificação do nosso cérebro? Pois, não temos. Nunca tivemos a certeza de nada.
É que não basta compreender e dar explicações sobre o comportamento dos sistemas vivos. Sabe-se agora que há alguma liberdade dentro dos sistemas e diferentes graus de liberdade, de espontaneidade potencial e de originalidade (Paul Weiss citado por Steiner).
E há mais novidades que vêm da genética e da biologia.
Haverá um sentido para o nosso caminhar? Vamos pensar nisso.
Não sei se é já Inverno, esqueci as estações - os seus começos.
Noutro tempo, pintaram-me o Inverno de branco, de silêncio, de névoa e de frio. Raramente, recordo isso aqui.
Lembro hoje as muitas férias que passei com a família nas montanhas cobertas de neve, boa para esquiar, respirando um ar tão puro e luminoso que se tornava fatigante voltar à cidade, voltar a respirar na cidade. Não me conformava com os cheiros que não são perfumes nem com cores que não são luminosas; não me ajustava ao movimento apressado sem fim e sem destino, nem a ruídos confusos e preocupações e explicações inaceitáveis.
Ali tudo tinha um sentido, era fácil e bom. E sabem…?
Gostava dos labirintos que sempre encontrei nas minhas deambulações pela montanha, dos vários palácios da Borralheira dispersos, todos desiguais e todos fulgurantes, do sol nítido que me punha os olhos vermelhos, da água cristalina refrescante como nenhuma outra.
E da luz esfiada das manhãs nos bosques de árvores resplandecentes que o Natal das cidades imita ainda…
Via esses pequenos bosques de perto, tinham para mim uma força desencaminhadora terrível. Até que entrei, um dia entrei. Era possível que alguma coisa ali me incendiasse o pensamento e ideias novas de importância alta viessem em turbilhão. É certo que precisariam de uma avaliação implacável…
Era um local ímpar com qualquer coisa de sagrado, pensava que alguns deuses podiam viver lá e viviam na verdade porque havia o que eu pensava ser tudo o que lhes agradaria: um silêncio indestrinçável e de grande qualidade, uma serenidade, uma transparência, uma frescura, uma pureza… Então, num instante e por magia, as árvores subidas eram colunas dóricas de templos gregos com os frontões triangulares das copas decoradas de relevos.
Afinal não era o que queria, aquilo era esgotante por perfeito e antigo. Regressei ao caminho liso, almofadado e branco que mal tocava. De vez em quando, um riozito atravessava-se – tinha peixes… não tinha peixes – era uma diversão, como os esquilos brincalhões que nunca antes tinha visto senão na banda desenhada do Walt Disney. E que ainda eram mais engraçados e mais animados do que os dos desenhos.
Passavam os esquiadores, os do esqui de fundo, no seu passo esforçado e duro. Eu considerava, que empenho, que zelo, mas eles pareciam satisfeitos e conheciam para que fim caminhavam, para onde iam. Sabíamos de onde tínhamos vindo, para onde íamos, quem éramos, toda a gente claramente tinha essas notícias.
Na cidade, as respostas a estas interrogações são sempre obscuras, como me parece que nos diz Cidália de Carvalho num post do blogue Mil Razões, o mundo visto das minhas janelas.
Caminhávamos para a casa-abrigo onde podíamos ter um fumegante chá de hortelã muito perfumado ou a caneca de café com natas, uma fatia de apfelstrudel, desde que tivéssemos umas moedas no bolso. A pequena casa era superaquecida e recordo o gosto de entrarmos em convívio caloroso, depois de horas no frio, nesse ambiente quente da lareira e do entusiasmo dos montanhistas, com gente que nunca tínhamos visto, de outros hábitos, que falava outra língua. Conviver com eles, fazia acelerar o movimento dos neurónios: era uma novidade radical.
Recordo a grande piscina de água quente no exterior com o vapor espesso saindo para o ar gelado, achava um requinte máximo esse privilégio de marajá aí ao alcance de qualquer um. Evoco as esplanadas onde parava e me queimava ao sol, literalmente e sem querer, apesar das preparações com produtos peculiares nitidamente insuficientes.
E lembro as criancinhas quase acabadas de nascer a aprender a deslizar na neve sobre os pés dos seus pais; da neta, ligeiramente mais crescida do que esses, a trepar por mim acima para se agarrar às correntes do teleférico em que descíamos muito sentados naquelas minúsculas tábuas! (um dia conto esta aventura). As pistas classificadas por dificuldade com cores como os cinturões no judo: as negras eram as mais difíceis.
Apreciava regressar um dia para não ficar com a ideia de que vou ter saudades do que lá não vivi. Para o viver agora? Não, claro. Claro que não: é apenas um pequeno impulso na direcção da utopia.
Apraz-me saborear a existência e o mundo, em muitos aspectos, apesar da convicção que registo: a de ter falhado a minha vida em relação ao sonho de alguém para mim.
Aprecio o alvoroço das manhãs, de cada manhã: aquelas primeiras horas de sol mesmo sem sol evidente, como hoje, quando o mundo é ainda novo e prometedor. E em que tudo pode acontecer... se estiver atenta.
Às vezes, estou atenta. E dou conta dos brilhos, das transparências, das cores e dos perfumes que me seduzem. Está lá tudo e fico feliz. Que mais poderia querer? E esperar? Está tudo lá.
Hoje, quieta, aqui, olho serenamente as ondas de espuma salgada e branca que correm em diagonal… pressurosas provavelmente, e logo depois e logo ali se esbatem e desaparecem. Talvez voltem para trás. Talvez as ondas sejam sempre as mesmas e não se cansem de repetir os movimentos, de devolver os gestos, durante horas.
Quem me dera ter essa paciência de sussurro: lutar contra os rochedos ou desviar-me deles e voltar… e voltar. Tentar ainda e voltar…quase em silêncio.
Desejava sentir que importante é o que tenho estado a fazer, a dizer: falo disto, não o sinto apenas e posso partilhá-lo.
Há sempre algo vagamente secreto que não descodifico de imediato. Afinal é sempre desigual a forma de as ondas se exprimirem. Por vezes, atiram-se contra as rochas já luzidias e a espuma incrivelmente branca sobe muito e desaba do alto. Outras, dispersam-se a meio-caminho como se se perdessem e já nem sequer encontrassem aquela pedra escura com as conchas que a habitam. Ou dividem-se em pequenas linhas de espuma que correm para a praia assim partidas.
Vivo isto e tento descrevê-lo como forma de o partilhar. Sinto que nem sequer é luminosa esta manhã - nem clara nem distinta. As ondas não têm um projecto, talvez dancem. Sim, acho que dançam. E eu não me concentro de modo a ver todas as formas que a claridade devia recortar. Estará a luz dentro de mim, apenas? A luz…? E não transborda?
Se estivesse verdadeiramente apaixonada pelo mar, como pensava, não falaria de ondas, mas de mar. Porque agora o meu amor só pode ser infinito e o mar é um objecto suficientemente infinito para eu o amar.
Mas não estou apaixonada.
Diz Eduardo Prado Coelho: “Porquê esta necessidade de ser engraçado? Liminarmente detesto-a. Como tudo aquilo que converte em imperativo (em pesadelo) algo que só pode ser da ordem incalculável do acontecimento: o riso. Detesto o vestuário que tem que ser engraçado, as esferográficas engraçadas, os bilhetes postais engraçados, os jornais que pensam que tudo o que não é irresistivelmente engraçado só pode ser infinitamente aborrecido (e assim disfarçam a ignorância, a superficialidade e a estupidez).
Mas há mais. Verifica-se que a obsessão do engraçado é sempre (ou quase sempre?) sintoma de uma estrutura neurótica. Vejam-se as terríveis depressões dos grandes cómicos e humoristas”.
Não estou inteiramente de acordo com EPC. Prefiro que as coisas, todas as coisas, tenham graça. Sempre é uma boa qualidade, não se perde tudo. As coisas e os acontecimentos precisam de ter graça para terem algum interesse. Algumas. Se não tiverem mais nenhuma qualidade, pelo menos… que tenham graça.
Pronto, se tiverem as qualidades todas menos a graça, que fazemos com elas? Não somos atraídos por elas, que podem ser até obras de arte. Mas já não temos vontade de as analisar. Claro que há as cheias de graça, sabemos para onde as enviar.
Por exemplo, estas obras do meu vizinho… não era melhor que tivessem graça? Acho que ninguém procurou a graça nelas, eu não procurei. Ou não têm mesmo. No entanto, vejam, se todas as coisas tivessem que ter graça, e tivessem, talvez eu estivesse muito mais feliz e isso seria bom para mim e para o mundo em geral. Saberia criar um ambiente vibrante e engraçado, com o mar ali e os barcos acolá e o porto à vista. Estaríamos todos sorridentes.
É que encheram a minha casa de poluição: pó branco e fino, movimento desvairado, sons alucinantes e de intensidade devastadora… Eu perdi o meu canto de recolhimento, sei que… por meses. O ruído sobretudo é de tal modo agudo e perfurante e penetrante que continua a poluir o meu espaço muito depois de ter terminado.
De modo que, pouco adianta o que possa dizer e fazer, pouco adianta esperar pela hora em que termine o trabalho do pedreiro perfurador e do electricista incisivo e intenso… o silêncio não vem. E o silêncio é o meu companheiro preferido em muitas horas do dia.
Tudo isto é irresistivelmente aborrecido, acima de tudo porque não é engraçado. É verdade. E também não é engraçado porque é terrivelmente aborrecido. Se fosse de algum destes modos, tudo estaria bem. Eu acho que poderia ir até desculpar o ser tão aborrecido se fosse engraçado quanto baste.
O acontecimento, alias, qualquer acontecimento devia ou podia, pelo menos, ser as duas coisas: aborrecido, ter eventualmente e secundariamente outras qualidades, e engraçado.
Tenho que ser obstinada nisto de querer ler uns livros novos em sossego já que não aprendi a suportar o aborrecimento. Nem a prescindir do engraçado.
É nestes momentos que apreciaria ser plenamente exterior ao mundo. Não ter nada a ver com ele.
Ana Fernandes, licenciada em escultura pela ESBAP, expôs pela primeira vez ao público em 1986 na Galeria Vantag, na época dedicada à arte naif. Se bem que as obras da artista não tivessem nada de naif, a exposição foi um acontecimento brilhante que, penso, se não repetiu com o mesmo fulgor. Como a Galeria só abria à tarde, os interessados esperavam pela abertura numa ansiedade, não fosse vender-se aquela peça de que mais gostavam. Para a Galeria, foi um deleite.
Eram joias, não de metais preciosos, os materiais eram outros e invulgares: botões e fivelas de galalite, galões, fitas, cordões, rendas que foi colecionando e que adquiria em lojas que se desfaziam de antiquados ”stocks”. Mais tarde, começou a usar a prata como suporte muito apropriado ao seu género de trabalho.
Convidada por Elvira Leite, então directora artística da Vantag, expôs ainda na Galeria em 1990 com êxito assinalável.
Participou individual e colectivamente noutras exposições na Fundação Gulbenkian, na Casa de Serralves, no Museu do Traje, na Galeria Árvore e em muito importantes galerias de arte em várias cidades do País.
São suas as Memórias no Museu Soares dos Reis, no Porto. Para mim, que estava um pouco alheia e longe do que Ana Fernandes tem feito nos últimos anos, foi completa surpresa, e motivo de perturbação. Apenas esperava ver joias de ornamento e objectos de prata úteis, de boa forma e design contemporâneo. De certeza, muito belos.
Distração minha…
… que fui ao Museu, deambulei por lá, sorridente, sem perceber muito bem o que estava a ver, mas encantada, tocada. Os seus objectos e instalações ligam-se eventualmente às peças que é de hábito ver expostas (prefiro as que são silêncio crepitante como a da sala Viscondessa de Almedina) e são principalmente memórias de infância, de infância feliz, brinquedos, sobretudo bonecas. Testemunham formas de viver de há cinquenta anos ou mais e as emoções que a sua presença provoca são de curiosidade, de fascínio, de prazer. De nostalgia, talvez também.
Destaco o baile de máscaras, bonecas vestidas com formas de cozinha de folha, muito usadas, com que compõs saias de cerimónia, rodadas e de folhos, pregueadas e de “godets”. E com fitas e rendas criou os toucados, os penteados, os chapéus e os véus, as máscaras tenebrosas apropriadas à festa.
Extremamente criativa, Ana Fernandes; as suas peças são sempre outra coisa para além do que são e sobretudo do que foram. Ela é visionária em relação a qualquer objecto, abandonado e aparentemente sem préstimo, pensa no que é possível fazer dele, e modifica-o, dando-lhe forma artística.
E permite a quem observa recordar, sonhar, imaginar entre o passado e o futuro... Ou entre o passado e o presente? É essa a sua estranheza. É também o inquietante talento da criadora.
Essa gente de idade média é a única que tem lugar reconhecidamente garantido na sociedade que organizamos. E que parece ser deles.
Sobram as crianças e os velhos.
Uns e outros destes últimos precisam de lutar (em que condições, com que capacidades?) por um lugar ao tempo. Ao sol, é melhor.
Estamos desde há muito em época de transição e de interrogação. Assim, dirão os de idade média: o que faremos com eles?
Uns e outros estorvam, segundo parece, os muito novos e os muito velhos; e os que estão na frente, justamente em primeiro plano, é que têm que resolver. Governam, sabem tudo, disponham.
Terão que decidir como vai a sociedade prescindir dos mais novos… não me parece possível, mas sei lá, e dos mais velhos.
Poderá ser um dos grandes problemas do nosso tempo.
Para ajudar, farei um paralelismo entre a grande Idade Média e a actual idade média média.
Não julgo, como se disse durante muitas gerações que foi uma época obscura, já ninguém pensa assim. Antes, foi brilhante pela grandeza dos temas e sua profundidade e pelo que a nova forma de pensar permitiu descobrir e inventar.
É certo que uma boa parte desse tempo foi passado a interpretar textos antigos, a comentar e a comentar os comentários, mas também, lá para o fim, a falar dos universais e da razão.
Estamos a ver de que modo chegámos à ciência: privilegiando o interesse pelo mundo e pela razão. O homem é razão e só ele pode compreender o mundo. Deus não está para nos aturar, apesar de uma paciência sem limites.
Foram eles, foram os da Idade Média que chegaram a estas conclusões depois de muito aprofundar, discutir e comentar: voltaram aos conhecimentos antigos, repensaram-nos. E renasceram.
Actualmente, os de idade média, cheios de razão e de expediente, vão compreender que há muito mais mundo para investigar, além do futebol e das políticas. Não vamos abandonar as ciências, há que fazê-las avançar e que descobrir, do mesmo passo, como tratar as crianças e como tratar os velhos sem desperdiçar uma imensa ternura e uma sabedoria vastíssima.
Tenho muita confiança neles, vão renascer de forma brilhante.
(imagem: afresco do Monastério de Mileseva, na Servia, colhida na Internet)
O ruído é perturbador, extremamente: é a casa do meu vizinho que está a ser demolida. Quero dizer, o apartamento ao lado do meu está prestes a fazer colapsar todo um prédio enorme, onde o meu e o dele se inserem. É um edifício com aparência de bem construído, embora eu saiba que não é tal.
Não há pior.
Durante algumas semanas, o pó branco invadiu a minha
casa sem que o manter as portas fechadas adiantasse o mínimo. E quando pensei que essa fase tinha terminado, bom, não só não terminou como é complementada por um ruído de verruma gigantesca e fantasmagórica, berbequim, broca insuportável, a esburacar o que resta.
Presumo que o inferno seja isto, ou coisa semelhante. Apenas costuma ter fogo descontrolado e calor, segundo o dicionário. Este talvez não tenha, mas o ruído, este “raging inferno”, impõe uma dor que me pode levar longe.
Leva-me a pedir socorro.
E veio alguém que engrossou a voz. E o ruído baixou.
Uma hora depois, voltou com fúria aterradora. Não é uma ameaça, é uma ordem que está a ser executada com furor e de afogadilho, depressa, depressa, depressa…
O que restará da casa quando esta exaltação terminar? Da minha, digo.
A casa para mim é básica porque é onde vivo e me sinto bem, em harmonia comigo, com os meus parentes e ascendentes, com a família. E alguns pertences.
Já não é o lugar onde guardo tudo o que foi ficando desde sempre. De que sou depositária e que vou passar às próximas gerações. Não é esse lugar no sentido amplo e excessivo do termo, mas ainda é.
Ainda conservo, ainda exalto, ainda uso e estimo. Não sou implacável nem aprecio ver-me rodeada de objectos, eles não são o mais importante da minha vida, mas gosto de manter uma certa atmosfera de carinho pelos que me precederam. Por aquilo que eles utilizaram e apreciaram, que lhes deu e me dá satisfação e desejo de sorrir.
É por isso que dou relevo a algumas ninharias só porque pertenceram ao meu avô, ao meu tio-trisavô ou a algum vizinho amável que fez questão de eu ficasse com ela, bagatela.
Assim me vou reconciliando com o mundo.
Mas este acontecimento dilacerante que pretende acabar de uma vez por todas com a harmonia da casa onde antes havia paz e sossego e lareira acesa no Inverno, este acontecimento esgarçado (onde encontrei esta palavra?) … poderei desencadear um qualquer mecanismo de defesa contra ele? Ou de confronto? Onde param os meus penates protectores?
Penso numa estratégia individual desenvolta, uma acção simples, se bem que o tema seja de interesse colectivo, que me permita não me deixar arrastar nesta vertiginosa onda de desespero.
HELP!
Esta manhã, o mundo, que depressa me habituara a ver amável e risonho, desmoronou-se. O dia está chuvoso, raivoso de vento, frio.
É Inverno afinal? Pensei que não ia haver disso, este ano, mas sol brilhante sempre, alta temperatura, mar sublime e nuvens brancas e cor-de-rosa a formar airosos e artísticos desenhos no ar. E passarada ao fim do dia a regressar afortunada ao parque da cidade.
Enganou-me, enganei-me. Não há que fiar.
Sempre observei a chegada do quase-Inverno todos os anos da minha vida por esta altura, sem falhar. Por que havia de não vir este ano? Em atenção a quê? Havia previsões tão mirabolantes como sedutoras, de resto.
Nos últimos dias antes deste, vi auréolas em tudo, aquelas de que fala S. Tomaz de Aquino e o filósofo Agamben referido por E.P.C. Pude observar as coisas belas e difíceis que estavam aqui, os brilhos, as transparências, a fluidez, os desejos bons e as fórmulas mágicas …
Facilmente dei conta de auréolas no mar e nos barcos à vela, no sol e no azul, nas árvores e nas folhas caídas...
E por que não hei-de vê-las no mar encrespado como está hoje…? Cinzento esverdeado com pequenos farrapos brancos de não sei quê vagamente a desprender-se e que se consumirá nas mãos se lhe tocar?
E no céu que o reflecte (jogam um com outro?), no firmamento de tonalidades estranhas e misteriosas ligeiramente mais leve que ele, que o mar, com trapos suspensos, voando, sonâmbulos…?
Encontro aqui a perfeição, só que "a simples diferença" hoje é mais forte do que um estremecimento, mais promissora. Mais inquietante, também.
Não há nada de fútil nos movimentos desenvoltos do mar, é o que eu aprecio, embora pareça haver nele gestos desajeitados, irados e mesmo contraditórios. A questão é que nada disto é para compreender.
Espero que na minha escrita transpareça o que chamam a felicidade das palavras e não o desgosto por qualquer dilaceramento, por qualquer coisa demasiado comum. Não houve nada demasiado comum nem no movimento do mar nem no céu, nem nas cores nem nas formas. E eu descrevo o que sinto, mais do que o que vejo.
Cai agora uma água cristalina e vigorosa que canta nos vidros e se dispersa infinitamente.
E há a música que resta em torno de ti tal como as palavras que não chego a dizer-te, oh mar, apenas porque não sei dizê-las.
Continuo naquelas leituras que me dão um prazer muito especial.
Tudo o que não escrevi, de Eduardo Prado Coelho é um conjunto de textos que constituem o Diário I (1991-1992) que é um dos lugares da diferença que vale a pena analisar.
Diz que o que faz que a erudição possa ser luminosa se revela no trabalho filosófico de Giorgio Agamben, professor do Collège e figura extraordinária das ruas de Paris. Só ele podia ir ler, numa aula, num curso, num colóquio, um tratado sobre as auréolas de S. Tomaz de Aquino e mostrar como esse suplemento que se acrescenta à perfeição das coisas constitui “um estremecimento do absoluto”.
Questão mínima que faz a diferença, refere E.P.C.
“O Absoluto é igual ao nosso mundo com uma simples diferença. O que nos faz amar o mundo como ele é, e procurarmos nele os lugares da diferença – a emergência das auréolas”.
Os lugares da diferença. O que tenho observado da minha varanda, por exemplo, faz-me pensar que sou sensível às auréolas. Porque as enxergo e porque me agrada vê-las e pensá-las em silêncio.
E gostava de os poder ajudar, os que não as veem, a vê-las. E a pensar nas diferenças.
Porque nesta espécie de mundo que me tenho empenhado em ver assim acrescentado, há uma serenidade que me conforta. Uma paz…
Podia dizer coisas espantosas sobre o mundo se soubesse falar de uma “beleza absolutamente devastadora” e se me lembrasse de ter visto – “um laser metafísico a varrer a terra”, como o E.P.C. viu. Ainda não cheguei aí.
Sei que elas têm estado lá. Que diabo veem os outros, os que não enxergam as auréolas... aqui, ali, acolá?
Decerto coisas excitantes, opacas, ruidosas e desconfortáveis em que não importa deter-me.
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