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VER NO ESCURO

por Zilda Cardoso, em 29.03.14

 

 

Nestas últimas semanas de muitos afazeres, quase esqueci as ervas aromáticas minúsculas que lutam por crescer na minha varanda junto do mar. Dependem de mim e pedem atenção.

As flores … entrevi aquelas duas enormes do Cargaleiro sobre fundo vermelho, uma cor-de-rosa, outra azul e turquesa, e as miudinhas das travessas de porcelana oriental pregadas na parede.

Algumas vezes, durante este tempo, vi de soslaio, lá fora, o ar luminoso ou a chuva que cintila, o nevoeiro cinzento e zangado ou, pelo contrário, o que tem também luz, e as nuvens caprichosamente encaracoladas, admiráveis, mas nada verdadeiramente me impressionou. Reparei sim nos vidros sujos, no vento que teima em entrar pelas frinchas, nos muitos ruídos das inúmeras máquinas de cada apartamento deste prédio de muitos andares e muitas obras, e noutras desagradáveis realidades.

 

 

 

 

É fácil viver num andar alto, plano, sem escadas e sem outros inconvenientes trabalhosos, mas não é bem numa casa. Não posso tocar no céu nem na terra; só com o olhar, se tiver muita vontade. Estou longe de tudo. É um mundo de interesses que dificilmente se conjugam: que carinho encontro, que carinho dou? Não parece o lugar apropriado para uma relação familiar.

Porém agora no espaço remodelado onde estou cerrada, branco e imaculado, posso ligar tudo isto que vejo daqui - as aromáticas, os brilhos diversos do ar, os sorrisos sedutores e abertos do mar, os seus silêncios e um larguíssimo horizonte com pássaros contra o azul. Posso ligar tudo também com um pouco do caminho que costumo percorrer.

Calculo que o ar fresco seja muito do agrado dos pássaros que voarão com entusiasmo para sudoeste quando começar a escurecer.

Ontem quando a luz natural se apagou, foram os relâmpagos todo-poderosos que iluminaram o cenário, vindos talvez das profundezas mais sombrias, não sei.

  

  

Saí à varanda para perscrutar: os ruídos dos trovões eram outros ruídos.

É para mim uma época agitada, esta, em que preciso de soluções, decifrações, conclusões, umas e muitas, e não encontro. Tenho perguntas e confusão quando desejo o entendimento que sempre quis.

Com tristeza, penso por que estão os meus pais muito longe, desejariam poder apoiar-me delicadamente. Penso neles agora: deslindariam. Eles deslindariam com amor.

Talvez não necessite de grande clareza de raciocínio: preciso apenas de ver no escuro.

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publicado às 17:00

Todas as máquinas nascem com instruções

por Zilda Cardoso, em 16.03.14

Esta máquina fotográfica digital sem espaço na memória… para que me serve?

De súbito, dei-me conta de que ignorava como eliminar fotos já daqui passadas para o computador. Tento uma coisa e outra e… não é. Não é isso.

Tirei apenas duas em Serralves: uma à magnífica magnólia arroxeada e outra ao rododendro vermelho. Acabou. Tinha-me esquecido dessa possibilidade e… vim ao Parque fotografar as cores deste dia como se viesse descalça.

Terei coragem para perguntar a algum desconhecido como se eliminam…?

Achei que estava preparada para fixar centenas de imagens brilhantes de um dia esplêndido de sol, como este! Meu Deus, quando me conciliarei com as instruções das máquinas?

Ao fim de duas horas de considerações idiotas e muito rebatidas, acometi uma jovem com ar solícito, pedindo-lhe para eliminar todas as fotos em memória na minha máquina. (Não lhe perguntei se sabia, naturalmente). O que ela fez com a maior das facilidades sem consultar nenhum manual.

Está tudo lá inscrito em ícones expressivos. Veja, disse-me, clica aqui e aparece isto, clica acolá e aparece aquilo. Já está. Já estão todas eliminadas.

Fiquei…! Em poucos segundos, quedou tudo decidido. Foi só necessário ter nascido nesta época.

A mim pareceu-me prodígio.

Agradeci-lhe duas ou três vezes, penhorada, cheia de sorrisos. A certa altura, já distante, voltei atrás para agradecer de novo, pela quarta vez, perante o seu espanto.

Será que eles e elas sabem que é isto que têm para nos ensinar? Que tudo-o-mais é connosco!? (Bom, quase tudo-o-mais). E foi connosco?! E com os que nos antecederam?!

Será que sabem que têm um longo caminho a percorrer sob a alçada dos mais velhos?

Terão sempre um percurso a completar com os mais velhos enquanto estes existirem.

É bom que valorizem o que sabem - o que lhes foi ensinado e o que inventaram ou descobriram.

É bom que valorizem o que receberam de herança partilhada e não esqueçam que o que inventaram não foi do nada. Há um complexo contexto histórico e há um silêncio.

Não precisam de levantar muito o queixo, apenas carecem de ser inteligentes. E constato com alguma tristeza: há poucos destes à minha volta. Felizmente, há biliões noutros sítios, por isso, o mundo continua a rolar serenamente. 

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publicado às 09:32

As camélias na Câmara do Porto

por Zilda Cardoso, em 13.03.14

 

 

 

Gosto sempre de ver as camélias todas juntinhas em magotes distintos sobre o relvado, sem folhas a complicar – sabem,  aquelas folhas gordas, bonitas, duráveis, lustrosas, bem desenhadas que ficam cândidas mesmo na jarra sem flores. Aprecio ouvir chamar Rosas do Japão às camélias e prestar atenção à sua história. Acima de tudo, à história que liga a do Japão a esta, portuense.

Os turistas adoram e havia japoneses, no sábado passado, a sentirem-se o começo de todas as coisas.

Muitos jornalistas a quererem fotografar tudo, empurrando, acotovelando para a melhor imagem, a de primeiro plano. Quase gostei de ver porque, desta vez, a estrela na passadeira vermelha era a Camélia do Porto.

Havia muito diferentes cores, distintos tamanhos, explícitas organizações de pétalas e de estames. Achei que elas estavam ligeiramente desconfortáveis ali, na Câmara Municipal, na imponência do edifício, no átrio de recepção.

  

 

Estavam acanhadas e não muito sorridentes, eram lindas, quand même.

Havia-as de cor carregada, cardinal, pétalas quase transparentes, algumas com o centro fofo de várias cores, amarelo e rosado como um pompom de estames, maiores, mais pequenos. E havia-as brancas duma perfeição cuidada, inteiramente regulares, belíssimas, sem um ponto a destoar. E cor de salmão ou de coral, grandes. E vermelhas, claro, todos os tons de vermelho e de rosado. Não havia amarelas, mas quem se importa?

  

 

 As pétalas eram redondas, pousadas e dispostas na base como a fruta de uma tarte de laranja ou doutros frutos a partir do centro. Outras camélias mostravam as pétalas de pé e podiam terminar em bico. (Nunca antes tinha reparado nestas).

 

 

 

Algumas pétalas são grandes, colocadas em camadas bem visíveis, muitas camadas… umas, muito menos camadas… outras, às riscas brancas e rosa ou às manchas, com delicadas pinceladas, apenas nas pontas ou por toda a flor, com cuidados de geometria aplicada ou um pouco à bruta…

Havia-as minúsculas e havia-as enormes, volumosas e singelas, com apenas seis pétalas ou com tantas que lhes perdi a conta, com o centro amarelo e atraente em fios de pé terminados em almofada ou pétalas iguais às outras, se bem que dobradas e redobradas para ocuparem pouco espaço…

 

 

Tenho que voltar a ver… Fiquei muito alvoroçada.

No entanto, elas preferem estar no Palácio de Cristal com vista para o jardim, estou convencida disto, por favor. Que tal dois lugares de exposição!?

Numa cidade que dizem cinzenta, granítica e triste, elas são a nossa alegria em pleno Inverno. É agradável vê-las a serem bem examinadas, recebidas no City Hall, o Presidente a fazer o seu discurso e tal, os jornalistas e as flores em volta a decorá-lo e a gravar, os visitantes a apreciá-las num lugar largo e aberto mas, digo, elas prezam o jardim onde estão à vontade.

Tal como a cidade, são frescas, modestas, delicadas, sensíveis, muito belas e simples mesmo quando são complexas e aristocráticas.

 

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publicado às 21:03




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