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Tenho andado por aí a semear sorrisos - sem grande resultado. Se bem que a princípio o fizesse com muita convicção, o desfecho nunca foi o esperado.
Os amigos tinham-me recomendado: sorri, sorri… semeia, semeia... E eu…
Sorrir é bom, diziam-me, e muito conveniente, além de agradável.
Sorrir parecia então prometedor, mas já não tenho a certeza: fartei-me de semear e nada nasceu nem mesmo em tempo de chuva e temperatura primaveril.
Então qual o interesse em continuar…?
Possivelmente, percebi mal e os sorrisos não eram para derramar/propagar nem, por conseguinte, para nascer, crescer e multiplicar-se. Seriam para condimentar, espécie de especiaria cheia de propriedades terapêuticas, perfumada e colorida, chegada da Índia na última Caravela dos Descobridores. Para melhorar o sabor de qualquer coisa que eu oferecesse. Ou para aperfeiçoar a receptividade ao que apresentasse ou me fosse apresentado.
De qualquer modo, hoje, não encontro nada que se pareça com o que pretendo ter semeado.
Vejam, eu julgava...
Mas não sei por que me obstino em pensar no tema já que reconheço que só têm valor e verdade dois tipos de sorrisos impossíveis de encontrar a não ser em fantasias compulsivas.
Na minha vida, calculava ter visto pelo menos um: o meu já antigo. Inalterado. Ao espelho.
Estava redondamente enganada. Nem esse vi. Não existe!
Os sorrisos verdadeiros, os que vale a pena considerar, são os das personagens de autores tão importantes como Tolstoi ou Agustina. Isto é uma constatação!
Ou o do gato Cheshire. O gato desaparece e o seu sorriso fica no ar (ou nos ramos?) por muito tempo onde antes estava, no mesmo lugar, na cara do gato. Mas daí a pouco, reaparece o gato, ele e o sorriso, para repetir a façanha de desaparecer e aparecer, desaparecer e aparecer, não sem antes ter conversado com a sua amiga Alice.
Adoro aqueles dois, o gato e o sorriso que ambos povoam a minha imaginação desde que os vi pela primeira vez, há milhares de anos, no País das Maravilhas.
Aparecer sorridente e desaparecer deixando lá o sorriso… não posso imaginar nada mais fantasioso e inteligente.
Do mesmo modo, apreciaria que o meu sorrir se prolongasse no tempo e na memória de quem o visse como o dessas personagens importantes. Se eu fosse viva como elas e marcante, ele, a existir, duraria pelo infinito fora. Ou desapareceria e reapareceria como o do gato da amizade da Alice.
As grandes personagens, mesmo as de Proust, quando sorriem é para todo o sempre ou para muito muito tempo. As pessoas não se esquecem de como é belo e inspirador, recordam-no.
Se eu fosse personagem de ficção nem precisava de estar satisfeita comigo nem com o mundo para sorrir; não precisava de ter o mundo a meus pés nem sequer ao meu redor.
Sorriria, fosse pelo que fosse (incluindo todas as intenções) e toda a gente estaria feliz, imitar-me-ia com prazer.
Oh! Seríamos todos felizes como os príncipes, as princesas e as fadas dos contos de outros tempos.
Faço-me boa companhia, as mais das vezes. A escrita ocupa-me, porque o meu trabalho não é transcrever o que foi escrito por outrem. É transformar em escrito o que é por mim pensado.
Este pensado, este pensar é o que verdadeiramente me ocupa. E me faz companhia.
E, de certo modo, o pensado e o escrito estão intimamente ligados - não há escrita original sem pensamento conquanto haja pensamento sem escrita.
O pensado-e-escrito pode chegar-me de maneiras distintas. Para mim, há duas formas de escrever: uma é servir-me dos pensamentos que me ocorreram genuinamente e logo antes do acto da escrita.
Que são de estrutura muito frágil e se afundam facilmente. Qualquer mínima interrupção ou ruído pode fazê-los desaparecer da minha mente para sempre.
Mas eu persigo-os, sofrendo. Como se persegue uma ilusão.
Por isso, sinto o drama de não contribuir para o bem da humanidade (!) com um pensamento fulgurante, original e redentor apenas por que o deixei escapar com negligência. Que me tinha sido oferecido e não aproveitei.
E fico triste sabendo que não há nada mais triste do que perder um texto, nada. Nesse então, acho-me francamente só…
E perdida do sentido, de todo o sentido.
Mas pode acontecer que consiga escrevê-los, os pensamentos prodigiosos, e sentir-me espécie de mensageira, por muitos momentos, afortunada e em boa companhia, concentrada a ponto de não deixar escapar o sentido. Ponderando ainda que as palavras podem ser aquelas ou outras.
A outra forma é pensar num tema e aproveitar sobretudo os conhecimentos, as emoções, a memória daquilo a que o posso ligar e passar isso directamente para o papel. Quero dizer, sem aquela soberba e cúmplice matriz de que falei, apenas o tema a orientar-me.
Parto do pressuposto de que o tema que preferi é interessante e baseio-me em pensamentos que estão enraizados em mim, confusos e desordenados. E que organizo da maneira que sei, com o olhar posto no que quero atingir.
A diferença entre uma forma e a outra é que no primeiro caso transformo em escrita legível o que foi inspiração de momento, que elaborei simplesmente tecendo os vários elementos próprios da minha estrutura de pensamento antes de utilizar algum meio prático de gravação. E que me arrisco a perder tudo se não o fizer rapidamente.
O que pretendo é não deixar que se apague o que veio não sei de onde para mim como uma luz. Não o experimento como meu, mas como depositária que sou de um bem ou de uma revelação que devo estar apta a transmitir a outros.
Tanto para registar o que me ocorre desta forma como o que escolho e teço com o meu corpo e alguma técnica, como ainda aquilo em que faço interpenetrar uns pensamentos e os outros das duas origens, elaborando o texto, tenho de ganhar distância. Não devo estar envolvida de muito perto no que conto.
E escrevo na presunção de que o que conto e de que falo, seja o que for e qualquer que seja a sua origem, poderá interessar quem o ler. Ou não, dependendo mais da forma como está concebido e inscrito do que do acontecimento.
Passeei à beira-mar, como é hábito, de máquina fotográfica em punho. Queria apanhar umas imagens daquele mar danado, atirando-se tolamente contra os paredões , subindo em súplica (!) feito espuma cinzenta no céu….
O vento era gelado, de vez em quando caía uma chuvadinha com ou sem granizo que logo parava e deixava o sol entrar em cena.
Por isso, ninguém se recolhia: ia apanhando o que vinha, sol ou água de gelo, vento ou outra coisa.
As minhas fotografias não saiam, esperava por aquela onda, cheguei sempre atrasada ou muito antes do acontecimento, azar o meu.
Com ou sem cameras as pessoas observavam as ondas encostadas ao muro em frente ao sol. Já de longe gritava alguém para outro alguém: olha aquela onda, olha a altura da onda... e aproximavam-se.
Um belo cão cinzento de olhos azuis ladrava inquieto, talvez com mau pressentimento.
Regressei. Já tinha que chegasse de aragem salgada com todos os minerais possíveis dissolvidos.
Cheguei a casa e parei surpreendida e cativada. O sol… estava lá, no meu espaço, parecia ter vindo para ficar. Iluminava tudo e aquecia o meio. A sala era um esplendor: nada tão bonito, radioso e cintilante.
A minha casa… que quando saí estava murcha e invernosa… A minha casa!
Acolá estavam as pequenas orquídeas cor-de-rosa e os quatro corações a fermentar, lá estavam as laranjas na taça sobre a mesa pintadas daquela cor especial e fresca de Van Gogh; o grande mar caseiro de Noronha da Costa ria-se na parede do fundo. Além eram as fotografias que aprecio junto do pássaro de grande bico metálico muito quieto.
Foi muito gratificante.
Mas, bruscamente, o sol escondeu-se por detrás de nuvens espessas e de lá das nuvens espreitou para cá. Tudo ficou sombrio, e não voltou ao princípio ou atrás para repetir porque aqui nunca há recapitulação de coisa alguma. Com estes componentes não há.
É outra hora, outro dia, outra história que começa.
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