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Não descubro forma de me adaptar a este horário de Inverno: dias de dez horas, noites de catorze.
É pelo menos leviano e imerecido, tudo isto. Não se entende.
Interessa-me saber que quem trata do assunto: que ministério…que patrono… que universidade... que laboratório?
Há algum compromisso indizível? É tradição enraizada?
Talvez uma cumplicidade.
Noite é o que tenho mais para viver. Mas fatigam-me as luminárias, os lampiões, as lamparinas, as lanternas, as candeias, as lâmpadas…! Será que os nossos olhos foram feitos para suportar essa luz rude? A luz da noite?! Cheia de bruma? E com chuva a embaraçar mas dissimulada, caindo devagarinho?!
Me falha, pela madrugada, o Sol com maiúscula, esse personagem com estatuto icónico de que serei para sempre nostálgica
o brilho do mar
os diversos fulgores coruscantes.
E o mais… atropelando-se.
Sonho viver num país onde more uma reverberação profunda em permanência e os pássaros cumpram, todo o ano, a refutável missão de cantar e bater as asas para meu regalo. Justamente para meu regalo. Ou para contentamento de toda a gente que se deleite com, claro.
Um sol que brilhe e uns pássaros que cantem! É isso. E mais: onde haja transparências e aqueles silêncios copiosos que não são minados sequer pela cadência da música delicada que admiro.
Onde haja o que me incendeia o pensamento. Ou uma epifania.
Nada na noite aqui tem essa força sedutora.
De mim, tenho dois ângulos de visão: um que obtenho de fora para dentro, outro de dentro para fora. É natural que me conheça melhor do que qualquer outra pessoa me conhece. Por isso, afirmo: não acreditem no que eu lhes disser, hoje.
Posto isto, confesso que não sei como me vi. No primeiro caso, o espelho pode ter ajudado, ignoro se é fiel. O espelho pode ajudar nos dois casos: numa visão interior e numa exterior. No segundo, há conjuntamente a opinião dos outros sobre mim, construída e generalizada.
Como também não sei de que ângulo vejo os outros… porque os vejo!… é muito confuso. Não os vi apenas do meu ponto de vista… talvez de dentro de mim para fora deles (de dentro de mim para dentro deles ainda é mais difícil), vi-os, vejo-os também dos pontos de vista de muita gente e meios que concorrem para uma opinião.
Seja como for, o que me ocorre dizer-lhes no momento, é que as pessoas decepcionam todas, a todo o momento. Desiludem, incluindo cada uma a si própria.
Porém, sabemos que não têm de ser como nós queremos que sejam ou apreciaríamos que fossem. E nós também não temos de ser como gostaríamos de ser. Inventamos para os outros qualidades que não possuem, possivelmente nunca possuíram nem vão possuir. Talvez nem estejam empenhados em possuir.
E para nós quanto a nós… é o mesmo.
Qualidades boas, eventualmente qualidades más, são tudo efabulações de pensadores compulsivos.
Não conhecemos os outros nem nos conhecemos nem tampouco eles nos conhecem nem se conhecem.
Digo assim, não porque devessem ser como nós os engendramos no nosso pensamento, infinitamente perfeitos, no caso que me importa, mas porque por natureza são limitados, não são bem-acabados. Compreende-se? Mesmo os modelos divinos e os heróis semidivinos da banda desenhada e dos filmes americanos ou outros… têm, pelo menos, um ponto fraco nem que seja um calcanhar que dói.
(Contudo, isso não impede que eu gostasse de conhecer verdadeiros heróis, dos bons!)
Resumindo: a razão de quase toda a nossa desventura e descontentamento com terceiros e connosco, é querermos que as pessoas sejam de certa maneira e o pretendermos nós ser de determinada forma, de preferência aperfeiçoados sem limites, uns e outros.
Toda a sabedoria está nos limites. Há algures uma relevante sabedoria de limites.
É interessante sermos capazes de imaginar e estimulante desejar a perfeição que nunca alcançamos. Haverá um modelo num mundo platónico em que não tocaremos de nenhuma forma, não é coisa que exista na realidade. Acredito que é o de que não podemos ter experiência já que se trata de uma sombra impossível de reconhecer. A sua existência é como sombra.
E é na realidade que vivemos, não aí. E somos reais nós próprios, que estopada!
O mais conveniente para que nos entendamos é pensarmos só em nós.
Sermos totalmente egoístas, ajudará. Género: só me interesso por quem se interessa por mim. Se eu mostro interesse, o outro tem de seguir-me, tem de mostrar interesse. Em cadeia. E não importa quem começa esta troca de conveniências, se eu se o outro. O que convém é continuar, prolongar, colocar a fronteira longe.
Finalmente, devíamos estar sempre a empreender, no sentido de executar, e não a pensar.
Já não vivo a idade em que tudo está ainda para acontecer, em que pouca coisa está definida e é certa mas vai, muito provavelmente, acontecer no futuro. Apesar disso, sucedem todos os dias factos que mais ou menos me tocam e me fazem pensar. Entre eles, há novidades que podem ser gostosas.
Ainda me não tinha imaginado sequer num quarto como o que ocupo neste momento.
Há quadros embalados em plástico de bolhas cheios de etiquetas de cores coladas, voltados para as paredes, pousados no chão; uma cómoda velha inglesa e rústica muito escavacada, um espelho sobre ela, enferrujado, com minúsculas gavetinhas, um canapé Majorelle, duas camas articuladas, uma pequena mesa Artek, uma cadeira inglesa antiga “George V ou G. qualquer coisa”, dois candeeiros – de parede e de mesa de design contemporâneo, um tapete oriental… cada objecto de seu estilo e gosto.
A janela despida de cortinas deixa entrar a claridade da noite. A esta hora, todos os ruídos estão na minha cabeça, nenhuns fora, quero dizer.
Abro um livro de M. Gabriela Llansol - Numerosas Linhas, Livro de Horas III, diverte-me ela estar a ler Agustina e fazer um comentário à “opulência da sua língua compulsiva”. Diz que "a língua nela não é instrumento de trabalho, é o trabalho fatalmente realizado, circunscrito à linguagem que ela possui”.
Tinha recebido, havia instantes, a comunicação do Círculo Literário Agustina Bessa-Luís de que estava a ser feita a segunda chamada para a recepção de trabalhos a serem apresentados no Congresso de 14 e 15 de Outubro próximo sobre “Ética e Política na obra de Agustina” na Fundação Calouste Gulbenkian.
(Está dada a notícia e… ) Gostei da coincidência, talvez queira dizer alguma coisa. Apreciarei reflectir sobre as duas escritoras.
Acho que não há qualquer semelhança entre uma escrita e a outra ou entre as línguas que usam, se bem que ambas falem e escrevam Português.
Nenhuma é simples. Para M. Gabriela, escrever é um modo de amplificar”.
Agustina pensará do mesmo modo?
Ela conta uma história, pelo menos nos romances que são, julgo eu, a parte mais importante do seu trabalho, e conta-a com enormíssimo talento de prosadora. Perscrutando o passado, cria um mundo complexo cheio de personagens e de acontecimentos verosímeis naquele contexto, história toda baseada no que apreende da época e do lugar e do que enfim sabe.
Como os filósofos clássicos e os seus sistemas.
“E pergunto-me como poderia um certo agrupamento humano, nos seus solares, casas de lavoura, campos, ter existido com relevo se não houvesse aqueles modos de dizer, de nomear coisas, pessoas, animais, acontecimentos, para os manter ligados na mesma significação”( M. Gabriela Llansol a esse propósito).
Por outro lado, M. Gabriela constrói uma língua que é ainda mais difícil de compreender, que está mais perto da terra e dela própria, do seu corpo, das suas emoções. Há uma “multiplicidade de percepções que recebe directamente da vida”, diz.
Não parece estar a arquitectar seja o que for ficcional, mas a percepcionar com intensidade o que a rodeia e a passá-lo a escrita. Que é extremamente inovadora e, por isso, importante no panorama da arte contemporânea não representativa.
Voltando ao meu lugar, aqui, não há qualquer ruído exterior a mim. Tranquila, quase adormeço, enquanto penso se será a linguagem de Agustina antiquada.
Poderá falar-se nestes termos de uma catedral gótica com a perfeita elegância das paredes finas e altas ligeiras e tão próximas do céu, dos arcos e das abóbodas em ogivas cruzadas e sobretudo da iluminação por rosáceas e vitrais coloridos?
Poderá falar-se assim dessa suprema realização do génio humano?
Levanto-me, subitamente alterada.
Não pode!
A obra de Agustina é magnífica prova do brilho da sua inteligência e cultura. É um monumento ao engenho humano e à língua que perpectua e enriquece.
Não é questão de moda.
Queria fazer horas antes de regressar a casa.
Arranjei um chá verde fumegante e o brownie que me tinha atraído no balcão, e com o saco dos livros e o outro saco ao ombro esquerdo, tabuleiro nas mãos, parei, olhei em volta e não vi mesa disponível.
Logo depois, alguém se levantou e saiu, chamando-me para aquele lugar.
Sentei-me com tudo isso na frente e decidi fazer uma hora.
Uma hora é muito tempo para fazer sozinha. Fazer horas é um tema muito sério, de qualquer modo. Tinha de pensar very hard (considerei que isto se dizia melhor em inglês) e, concentrada, talvez brotassem de mim ideias curiosas que valesse a pena passar ao papel.
Se bem que o ambiente fosse de livros e de discos e de instrumentos sofisticados e computorizados as ideias ditas interessantes não surgiram.
Saí.
Fora, fascinou-me a luz deslumbrante que inundava todo o cenário depois da chuvada, brilhando com intensidade nova no pavimento molhado, nos carros, nos telhados
suspensa
vinda do alto, de trás das nuvens carregadas de rolos de macio cinzento e de espesso silêncio.
O que estivera eu a fazer ali dentro, o que estava a perder com a ideia de fazer horas como se as horas se deixassem fazer!? Elas pulsam e passam, não me dão importância, parece não me dizerem respeito, talvez apenas me ajudem a passar a vida…
Rolei devagarinho pela estrada e pela beira-mar, pensando num privilégio de mundo tão cheio de beleza em qualquer momento. É aquele milagre permanente que nunca deixa de me alvoroçar.
Porque não é o mar, não é a duna, não é a árvore… É tudo.
Enquadrado. Funcionando em consonância, não importa o que inventemos para o legitimar. Sejam quais forem as linhas sinuosas que ligam isto àquilo, aquilo a isto.
Ninguém repara no que existe… estão todos onde?
“Não precisamos de desejar aos nossos amigos: Peace be with you. Peace is already with them. We only need to help them cultivate the habit of touching peace in each moment”( Thich Nhat Hanh, mestre budista).
Chego a casa, aquieto-me, estarei só, aqui, até à próxima manhã.
Talvez consiga reunir ideias e imagens, conhecimentos e outros itens como desejos e coisas igualmente estranhas, neste esquivo dia de Janeiro.
Em tumulto interior, talvez saiba afinal o que descrever e escrever.
Apago a lâmpada de cabeceira, subo a persiana.
A luz do sol ainda está no cume do prédio das traseiras, lá longe contra o céu, e fios louros estendem-se e cobrem todo o espaço no alto, daí até mim, de extremo a extremo, paralelos a outros cinzentos de nuvens e aos azuis do suporte que transparece.
O mundo é já luminoso e ainda indeciso. É efémero, sempre a movimentar-se, a modificar-se, a evoluir…
Aprecio o espaço amplamente aberto… cada começo matinal. Tem uma espécie de qualidade adâmica que me atrai com grande força de sedução. Que eu vejo diferente cada dia, tudo formulado instantaneamente e engendrado com brio. Uma coisa e outra.
Velo para que se não consuma por completo num ápice, receio que aconteça.
No momento, não há silêncio, mas uma suave musicalidade, uma paciência no bater das asas dos pássaros, na água que corre e leva consigo… (Não leva, não leva. A água é transparente e dissimula, faz parte da magia ritual: leva e deixa ficar.)
Não vai nada com ela, pois. E vai. Desejo que aconteça, que carregue e que solte, não transporte: Cumplicidades. Êxtases. Indecisões. Reflexões. Silêncios. Ecos. Epifanias. Ícones. Cacofonias…
Começo a ver os rectângulos verdes do quintal do vizinho plantados de objectos frescos redondos uns, esguios outros, delgados ou densos, translúcidos ou escuros que irão crescer em ritmo combinado.
Enxergo as palmeiras de copas esquisitas, exóticas, dançando, francamente felizes.
E ouço o vento que colabora na mudança com genuína convicção.
Vai-se apagando a luz dourada e, daí a pouco, os fios de cores eram desaparecidos. Os cinzentos ampliaram-se, sobrepuseram-se e substituíram os outros, tornaram-se opacos, ficou um manto macio e sombrio sobre o meu mundo.
O Sol não apareceu. E esta é a radical realidade do dia.
Tenho tempo, tenho muito tempo para fazer o de que preciso e quero. E tenho tempo para dizer o que quero e preciso dizer - não devo preocupar-me.
O que devo dizer e o que tenho para fazer, digo-o e faço-o em pouco tempo.
Alguns lamentam não ter tempo porque querem comunicar e produzir coisas enormes, grandíssimas, que levam muito a pensar e a realizar, como Mozart, durante o Requiem, que repetia, possivelmente com desespero - não tenho tempo, não tenho tempo (citado por A. Lobo Antunes numa sua crónica).
No entanto, as minhas horas passam depressa, preenchidas. Prefiro saboreá-las com conforto e regalo, pausadamente; todavia, há sempre qualquer tema ou mote, qualquer texto noutro sítio que me interessa e que me leva a ocupar-me dele.
E há tanto em que pensar, pensando em pensar!... É para isso, sobretudo para pensar, que preciso de todo o tempo que reclamo. Nada de mais.
Vou dispor dele.
Sem pressas.
Tranquila.
Vejo a paisagem distante por entre as gotas melancólicas da janela de vidro.
Tudo em redor vai escurecendo, coincidente, sempre com a mancha mais sombria das árvores: escuras, mais tristes, coladas de frio umas às outras, com formas desiguais, redondas ou esguias e bicudas como pirâmides, altas ou rasteiras, espalhafatadas…
Todas as coisas choram hoje. E eu tenho de chorar com as coisas que choram.
A transparência da água da chuva?
Volto a olhar para fora: já vejo lumes ali e aqui. O negro continua a encarvoar e a água a cair e a molhar e a magoar o panorama. E tudo.
Porém, daí a pouco, as gotas do vidro da janela foram milhares de estrelas que desabaram sobre o mundo, tornando-o luminoso, festivo, jubiloso.
E gentil.
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