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Pela manhã, já lá está aquele ruído tremendo a impedir-me de escutar os meus pensamentos.
Olho pela janela: tudo é branco e azul, se bem que ainda haja lâmpadas acesas no escuro. Mas já não há escuro, distingo branco e azul e verde e cor de tijolo.
Vou à varanda cortar a erva-príncipe para o chá verde e perfumado e volto à cozinha. O ruído. O problema é que só um silêncio de boa qualidade me serve os pensamentos desta manhã… que quero profundos.
Daí a cinco minutos, tomo o chá.
O sol começa a brilhar nas traseiras daquela casa que enfrenta o mar. Não faço caso da casa, as árvores verdes vermelhas acastanhadas em redor, recortam-se no céu, sobem acima da morada, do mar e do horizonte. Não fico indiferente a todo esse reluzente espectáculo.
Penso que é o instante de o dia começar a nascer. Vejo numerosos barcos de dimensões e formas muito diversas, conto trinta quando a manhã ainda está repleta de silêncio excepto pelo ruído repercutido na minha cabeça. É um ruido que faz borrões no ar, é mole e acastanhado, fastidioso, obstinado.
Nunca vejo ninguém naqueles barcos, (tento esquecer…), que saem do porto e vão e nunca regressam, voltam-me as costas ou a ré, proa para outro lado, decididamente, nunca vêm para mim. É uma falha minha ou estão desertos, os barcos, e sozinhos, cada um.
Eu gostava de um dia ver um daqueles barcos dirigir-se para a minha varanda, desembarcarem pessoas que eu receberia e convidaria a sentarem-se nas cadeiras de verga para um dos meus chás, podia ser o de hortelã fresca.
Gostaria muito que aceitassem o chá e talvez também umas bolachas de alfarroba e amêndoa. Conversaríamos acerca do mar, do céu e das nuvens encaracoladas, da praia, das conchas e da passarada que se junta ali a conferenciar ou em comício, todos voltados para leste, e deixam marcada a areia grossa e húmida de forma misteriosa. Para que um perito em pegadas e vestígios analise com tempo.
Eles diriam de como é na sua terra, eu diria de como é na minha.
E ficaríamos por ali a ver o sol avermelhar no poente e talvez especulássemos sobre gaivotas decididas e patos bravos que voam para sul ao fim do dia.
De que mais falaríamos?
Um aniversário em silêncio
"As pessoas não morrem: andam por aí. Quantas vezes as sinto à minha volta, não apenas a presença. O cheiro, a cumplicidade silenciosa, palavras que saem da minha boca e me não pertencem, penso
- Não fui eu quem disse isto
E realmente não fui eu quem disse isto, foram as pessoas mortas, exprimem opiniões diferentes das minhas, aproximam-se. Afastam-se, vão-se embora, regressam, não me abandonam nunca. Em que parte da casa moram, qual o lugar onde dormem, devíamos deixar pratos a mais na mesa, talheres, copos, almoço que chegasse, os guardanapos nas argolas, um lugar no sofá, metade do jornal, dado que não se sumiram: andam por aí, invisíveis
(invisíveis?)
densas de humanidade, tão próximas. Umas alturas muitas, outras uma ou duas apenas por terem que fazer noutro lado, no caso de saírem não vale a pena preocuparmo-nos: têm a chave e a prova que têm a chave está em que entram, silenciosas, amigas, penduram os casacos no bengaleiro, sorriem.”
Trecho de uma crónica de António Lobo Antunes in "Quinto livro de crónicas"
Nunca estive apaixonada pelos livros de António Lobo Antunes. Eram originais de mais e davam trabalho a ler e a entender. Que estúpida!
Reconhecia que era um escritor singular, merecedor de todo o reconhecimento internacional, digno do Prémio Nobel e de todos os prémios, difíceis ou impossíveis. Claro que o lia, mas…
Agora estou caidinha pelas suas magníficas crónicas, sou grande entusiasta delas.
É tão interessante o modo como escreve tão inesperado, surpreendente, comovente, tão subtil, tão BOM!
É tão confortável!
Gostava de escrever assim. Não assim, deste modo. Mas assim… de outro, de outro jeito.
Fecho o livro das crónicas e sorrio para o longe horizontal e nítido, azul e azul, observo as ondas que se desfazem e refazem a todo o momento,
as árvores aqui, o vento que faz dançar as folhas vermelhas nos ramos do Outono...
Penso nas crónicas.
Ele é tão cheio de referências subtis, de recordações de infância e de juventude, de solidão, de tristeza e de silêncio…
Sabe criar o ambiente que quer com pequenas palavras, semi-dispersas como peças quase soltas de uma organização complicada que eu agora destrinço com prazer. E reconheço. Construo um mundo que pode ou não ser o dele - o que ele quis construir. E dou-lhe um sentido, o meu.
Na verdade, a sua crónica é tão sem sentido como certo bailado clássico em pontas. Quero dizer, é expressiva, carregada de emoções, sem história a contar ou quase sem, muito técnica, ligada à arte e à música (de que raramente fala), admirável. Sugere uma atmosfera, talvez um argumento, um episódio solto, um guião, como se diz (acho uma graça!), como qualquer obra de arte, à sua maneira, e é o que eu vou tentar descobrir. Não com gestos e movimentos do corpo, não com palavras mais ou menos declamadas, não com toques nem com sopros em instrumentos musicais, não com pincel e tela e tinta, não com cinzel e pedra dura ou outro material qualquer como cola e recortes de papel, não com câmaras fotográficas, não... senão com palavras simples, claras e eficazes.
Palavras que são uma estratégia segura.
Permito-me distinguir uma crónica deste quinto livro de crónicas - "Ó pastorinha de vitral e bruma" - em que fala da sua mãe em termos extremamente comoventes, um verdadeiro poema de amor.
Continuo em cativeiro ou em prisão domiciliaria, e como é agradável!
A verdade é que só me sinto fechada quando há nevoeiro, o que acontece, mas já não há disso há uma porção de dias no Porto!
De modo que, rodeada de tanta beleza natural e mesmo construída, sou a rainha do sítio, sempre a olhar para fora, para esse meu largo reino, enquanto as mãos funcionam noutro diapasão, dentro.
Penso muito, tento aprofundar. E vem logo a pergunta impertinente: o que estou aqui agora a fazer?
Seja o que for, estou, não vim. Não vim de nenhum lado e já havia isto quando me encontrei.
“Por que há isto e não nada?”- perguntou alguém de cujo nome não me recordo.
Não sei responder e gostaria.
Poderia haver nada? Provavelmente, não faz sentido. Nunca vimos nada, não sabemos o que é. Por que razão nos massacramos para descobrir o que é nada. E o que é donde e o que é para onde? O donde viemos? O para onde vamos?
Ora, que nos importa? Criamos voluntariamente a nossa ansiedade… não tem a ver com nada nem com tudo, nem com lugares nem com tempo, não se relaciona com aquis nem com agoras.
Vamos viver isto, que diabo! Isto. O melhor possível, seja, como nos agradar.
Pronto.
Cada noite sonho com o dia que aí vem
desejo que a luz me conforte, que não haja névoa,
o sol se filtre por entre as folhas altas e vermelhas
o canto dos pássaros se ouça e os rios corram tranquilos...
A luz é indecisa, é tudo silêncio e obscuro.
Escuto um bater de asas, o seu eco apenas.
É cedo, não rompeu a madrugada afinal
Penso
penso o que fiz mal, o que faço mal ainda
que coisas nunca entendi e não entendo
que palavras devia ter dito que gestos
qual a atitude certa perante eles…
Não sei, apenas me interrogo: com que posso
deveras contar depois da madrugada?
Fui visitar o Parque como me tinha prometido. As árvores estão deslumbrantes com as suas cores do verde a diferentes tons de amarelo até ao vermelho mais ou menos vivo.
Fui em grupo orientado pelo director do Parque, João Almeida, que contou um pouco da história da
casa.
Tenho algumas imagens.
.
É um prodígio ardente o que neste momento desaparece apressadamente no horizonte, na água, melhor dizendo. Em frente a mim.
Sei que não vou ter tempo de preparar a máquina fotográfica, mas vou tentar.
Sem êxito! Quando bato a chapa, ele já mergulhou.
Digo, mergulhou, e fico preocupada.
Quero voltar a vê-lo, mas receio já não ter essa oportunidade: ele vai derreter, dissolver-se rapidamente, já deixou avermelhado o horizonte nas proximidades. É um vermelho misturado com azul e é muito bonito.
Ou talvez volte e não tenha acontecido nada de grave.
Deve ser um processo mecânico ou coisa assim.
E amanhã pelas 5... pelas 6, ele irá surgir, como se nada se tivesse passado, no lado oposto da minha paisagem, a erguer-se lentamente.
Passará sobre mim e voltará a mergulhar depois das cinco naquela água azul transformada em turquesa. Presumo que vá nadando sem se fatigar, com paciência, por dentro da água; arrefecerá, perderá a cor incendiada e a maior parte do calor e da luz.
Durante doze horas, foi o que antes sucedeu, quero acreditar que é o que vai suceder.
Todavia, não posso deixar de recear que ele se canse, que um dia vá deveras fatigar-se e que não o tenha de volta, que não o tenhamos de volta de manhã, amanhã.
O meu desassossego é se não vamos ter amanhã.
Mas trata-se de um ritual mágico, não pode falhar, que ideia se me meteu na cabeça!
É como quando, deitada, ouço o meu coração bater com força, arritmicamente, divirto-me com isso e penso como seria engraçado ouvi-lo parar. Gostaria de ouvi-lo parar, de ter consciência desse descontinuar e, naturalmente, de ter conhecimento do que será o instante seguinte.
Penso assim porque estou bem-disposta, vem aí um dia cheio de sol e, à tarde, vou a Serralves ver, pela milionésima vez, o Parque no Outono e espreitar a gigantesca exposição de Cildo Meireles.
Estivemos em Lisboa há dias, fomos e regressámos de comboio. É confortável e rápido e baixo preço.
A Rita quis saber sobre comunicação e falou com a grande comunicadora que é a minha Amiga: foi um gosto ouvi-las. Tenho esperança de que o trabalho da jovem vá ser muito bem classificado. Para a minha Amiga foi um esforço grande de boa vontade, o interromper o seu trabalho para nos atender. Para responder às perguntas da Rita.
A minha Amiga sabe tudo sobre comunicação e como conseguir interessar as pessoas nas suas palavras… que são muito mais do que palavras. Ela dá-lhes um sentido seguro e digno.
E as suas atitudes acompanham o sentido das palavras que diz.
Naquele dia, ela apercebeu-se de que eu e a Rita íamos ter um intervalo comprido desde a conversa até à hora do regresso. E resolveu fazer um programa connosco…de improviso. Apesar de o telefone estar sempre a tocar e de o trânsito àquela hora ser impossível, ela esteve connosco o tempo todo: levou-nos a sua casa, contou-nos as suas histórias, fez-nos uma saborosa merenda e levou-nos à Estação do comboio. Todas estas tarefas foram gigantescas pelos seus afazeres, pela dificuldade do movimento nas ruas, por mil outras razões.
A sua é uma das casas mais bonitas que conheço: bem situada, magnificamente decorada, acolhedora, de muito bom gosto. Só pode ser a casa de uma pessoa inteligente, civilizada e culta.
Trouxe algumas imagens que não lhes fazem justiça, mas eu não soube fazer melhor.
O importante é que me comoveu a sua condescendência, a sua bondade, a sua atenção, a sua amizade e… a sua casa que resume tudo isso.
A grande novidade (!) de hoje é que fui à praia, andei sobre a areia húmida, com um sol resplendente a aquecer toda a zona e uma – UMA – jovem pernalta a vigiar-me dos rochedos com particular atenção.
(as minhas passadas na areia)
Eu caminhei com cuidado, marcando fundo a areia lisa, e espreitando a restinga em busca de moluscos inéditos e pensando que ali não encontraria senão caramujos. Calculei que biliões de caramujos de várias formas e cores estejam por ali, mas nunca beijinhos.
Quando era miúda e vinha para a praia do Molhe com primos e amigos, era o mesmo. Se queria beijinhos, tinha que ir a Leça procurá-los. Ali havia mesmo a Praia dos Beijinhos, onde de certeza se encontrariam.
Não era porém fácil ir a Leça - tão longe! – era necessário autorização superior e alguém de confiança que nos levasse lá.
(lá está a pernalta!)
Mesmo de autocarro, que era o mais certo, pois na época nem toda a gente tinha carro nem ia para a praia de carro, morando na cidade.
Sorri com estes pensamentos, com as diferenças: Leça longe, autorizações da família para movimentos tão visíveis, interesse apaixonado por conchas mesmo especiais… atitudes simples, gestos ingénuos.
Ai como é diferente… ai como é diferente…
(o beijinho pre-histórico)
De súbito, ali à mistura com todos os pensamentos meus e aquelas conchas há muito vazias, vi um beijinho, um só, solitário!
Quase dei um grito: Como é possível?!
(tão bonito!)
Ganhei o meu dia. Há quantos anos não apanhava um beijinho assim pequeno e modesto? Tão cheio de sol e solitário!
Levo-o comigo, poderá ter sombra mas nunca mais estará só.
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