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Esta é a minha nova aventura: tenho uma casa onde temporariamente vou estar. Carregada de tralha que não vou usar, colocada em caixas, caixinhas, sacos e saquinhos negros inclassificáveis, apesar de terem letreiros colados supostamente para se saber o que contêm e escondem. Isto é… nada. Nada importante.
Espalham-se pela casa, acumulam-se em certos sítios, proliferam.
A mistura de objectos é diabólica e não há coisa alguma, por elementar, que se encontre. Que eu encontre: nem café nem bolachas de alfarroba nem um copo para beber água quanto mais água bebível!
Um desespero! Ou uma diversão!
Mas não tenho roupa para vestir, essa é que é essa! Para tomar banho tenho água, já é alguma coisa.
Não existe telefone, nem televisão nem internet.
Há uma cama extremamente confortável onde vou dormir tranquila. De certeza.
Amanhã veremos. Falamos.
Veremos e falaremos sobre se é urgente tratar algum dos assuntos desinteressantes que a minha agenda inclui.
Então resolvi sair.
Amarrei um lenço na cabeça, era a beira-mar outonal.
Estava a ser um suplício, e por que razão o dito mau tempo me havia de aprisionar em casa!? De não me deixar espaço para distinguir o pensamento rotineiro e insuportável do outro?!
Quando saí, disseram-me: não chove tão cedo! Mas não acreditei, como é possível que tanta gente saiba tudo acerca de meteorologia e previsão?!
Fiquei maçada. Queria que chovesse.
Pensei que ia poder recebê-la fresca e límpida sobre a cabeça e os cabelos, que ela, pelo menos, ma lavaria de pensamentos desagradáveis e excessivos como tudo e principalmente desinspiradores. Mas queria que me deixasse ficar os outros. Daí o lenço.
Entrei na Farmácia e pedi um colírio e mais qualquer coisa que era comprida e ficava mais de metade fora do meu bolso. Eu queria meter tudo no bolso, não levava bolsa. Não consegui e trouxe os dois objectos num saquinho minúsculo todo enfeitado e colorido.
Caminhei com o saco a abanar fortemente na mão, atirando-o para a frente e para trás ao ritmo da passada, sem o largar, invocando a chuva. E a chuva não caía e… bom, desiludiu-me completamente.
Queria muito receber a água. Como uma purificação. Limpar ideias, diminuir a pressão, a tensão, o que quer que fosse que não me permitia estar tranquila nem não estar inquieta. E quero que o meu pensamento não seja “uma forma de massacre”, “massacre de si”, como terá dito alguém que é inteligente e gosta de pensar. Como eu gosto.
“Mas não podemos pensar ininterruptamente esses pensamentos, não podemos estar sempre a repensar o que pensamos e o que os outros pensam e o que ouvimos, pois chega o momento em que seremos destruídos por essa lancinante broca persistente do pensar, momento em que pura e simplesmente estaremos mortos.” (Shakespeare citado por G. Steiner).
Não quero ser vencida pela broca para já. Detesto brocas.
Quero a chuva. Suave. Que deixe alguma coisa para trás, na minha cabeça.
Aquela toalha de seda selvagem apenas ligeiramente enrugada tem um brilho muito próprio: o da água salgada, imensa, iluminada, num dia especial. É azul-turquesa, mais verde do que azul, e é deslumbrante, àquela hora. Distingue-se a linha do horizonte com perfeita nitidez, separando céu e mar.
Para cima, é o céu de um azul claro e doce com nuvens bem desenhadas e cheias de luz dourada, onde a passarada se diverte.
O Sol quase pousa no mar vindo do meio do céu para a borda. É de ouro de bom quilate, avermelhado e resplandecente na sua imensa auréola. Não enfiou logo na água: permaneceu sobre a água, recortado no céu, um pouco à frente da linha de separação. E vi uma espécie de buraco negro no centro.
Pareceu-me um bolo redondo como os que fazia a minha avó, sempre impecavelmente iguais, leves como espuma, com o buraco no meio que permitia que sempre ficasse bem cozido e fácil de cortar em fatias pequenas.
O Sol cada vez mais enrubescido acabou por se enfiar na água, como era de esperar. E o buraco negro e esquisito era um grande navio que passara no momento pela frente dele, daquele sol, a pouca distância, quase tocando-o, e que ficou depois bem entalhado no céu. Até que, do mesmo modo, se foi.
Não me perguntem para onde.
Que dia maravilhoso! E que amabilidade de temperatura para uma terra do Norte tradicionalmente frio e húmido.
O golden retriever de estimação corria feliz na areia e a certa altura meteu-se na água com grande consternação da dona que não queria de todo que isso acontecesse. Ele ignorou o seu chamamento, saiu quando quis e arranjou logo um companheiro minúsculo e ambos correram ora num sentido ora no outro, metendo-se pelo molhe dentro com as donas atrás correndo de sapatos na mão. Eles estavam-se nas tintas para a aflição delas e gozavam o melhor possível o momento.
Foi um bonito espectáculo.
Achei extraordinário o mastro sem bandeira muito perto do banco de pedra onde me sentei estremecer e vibrar. Ninguém lhe tocou enquanto estive ali, mas ele oscilou todo o tempo, fortemente, estando bem seguro nas suas amarras. Talvez do centro da terra, do mais profundo, alguma coisa tivesse subido e lhe provocasse tão prolongado abalo.
Não chegou para ensombrar o dia.
São 7 da tarde do princípio de Outubro. Alguém mais entrou na água e se deleitou visivelmente com a sua temperança.
Afinal, talvez o mundo não seja tão desagradável como eu estava a pensar.
(imagens da cidade gentilmente cedidas por Primavera Lima)
Desci à Baixa do Porto.
Há anos que não frequento essas ruas que antes calcorreava todos os dias por afazeres. Que mudanças teriam ocorrido, ia pensando e caminhando rapidamente, não tinha todo o tempo do mundo. E começava a cair uma chuva minúscula, levezinha.
Encontrei muitas diferenças, agradáveis… desagradáveis.
A cidade volta-se decididamente para os turistas estrangeiros e para as suas pequenas necessidades e desejos. Procura fazer negócio com isso, naturalmente. E então pululam pequenos restaurantes e cafezinhos com as suas esplanadas nos passeios, impensável há poucos anos. E muitos letreiros com imagens coloridas dos pratos que servem, não é preciso saber português nem qualquer outra língua para escolher.
Tudo na rua pode acontecer. Mesmo em frente ao Coliseu, exibem-se malabaristas na mira de uma moeda. E a maioria das pessoas passa e não dá importância. Há quem cante e dance e toque um instrumento musical… com resultado idêntico. Fazem um esforço para melhorar a nossa vida e a deles e só por essa razão… é louvável e merecem a moeda. Passei e não a dei… que horror!
Tornaram-se animadas as ruas da Baixa. Mesmo assim têm um ar muito usado, antigo quase gasto, e sujo. Vá lá, com optimismo, um pouco sujo.
Estava um calor húmido e a roupa colava-se à pele. Também porque continuava a cair a hipótese de chuva que não parecia.
Ia humedecendo.
Comecei a imaginar animais gigantescos dinossáuricos a respirarem para cima de mim com o seu bafo quente e vivo. Apressei-me.
Não pousava os pés no chão por várias razões. Mesmo assim, comecei a ficar cansada com aquele constante subir e descer… Clérigos… Santo António… Passos Manuel. Reparei que tinha que descer sempre que subia e vice-versa. Serão colinas? Quantas? Pensei que esta cidade não era de colinas.
Tinha partido do Bom-Sucesso, antigo mercado tradicional onde fiz as minhas compras de legumes e frutas durante anos, agora muito limpo e sofisticado, com cafezinhos e esplanadas, mesas e cadeiras no exterior lá dentro, sem animais jurássicos vivos nem outros desconfortos. Preparados para um pequeno-almoço não continental ou para comer e beber qualquer coisa ao longo do dia. Comprei um belo pão de alfarroba.
E voltei a partir da Torre da Cidade, aniversariante, passei na Cândido dos Reis, desci a rua da Fábrica, atravessei a avenida da Liberdade e na rua de Passos Manuel encontrei os saquinhos bordados para meter a alfazema de Moledo. Tal como procurava.
Pus um chapéu de pano que me abrigou da chuva. Fez surgir na minha cabeça, assim posta a ridículo, um pensamento capaz de se exprimir por inteiro nesta frase: Dos livres de espírito, é o reino dos céus.
Idiotice que me fez sorrir.
A chuva parou. Senti-me um pouco menos estúpida sem o chapéu. Entrei no carro que me levou de volta a um mundo mais deste mundo.
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