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Prisioneira nesta casa! Sinto-me cativa! Nada me distrai, nada me ocupa: livros, televisão – nada nem ninguém!
Sitiada, sem poder sair, com inimigos lá fora prontos para o assalto! Que mal eu fiz?
É a chuva que cai sem parar, acinzenta tudo, muda o meu mundo.
Não está lá o mar nem as nuvens brancas, nem os barcos nem as gaivotas. Nem sequer há vento. E não gosto deste silêncio nem desta música.
Pego num livro e logo me aborreço. Ligo o televisor… ainda pior. Que faço? Costurar? Não, não, tem que ser com sol. Cozinhar? Fazer um bolo? Ideia idiota. Para quê… para quem?
Arrumar gavetas? Xatice com um x, melhor, com dois xx assim - xxatice. NÃO! Telefonar aos amigos num domingo?
Não há nada que possa fazer em casa, hoje, alguma coisa que tenha um mínimo de graça.
Então resolvi deitar-me, descansar de tanta luta. Adormeci a pensar em Mrs. Bellamy, coitada, tão só, tão desamparada, tão desiludida.
Quando acordei, um sol radioso brilhava em toda a minha volta. Corri à janela.
O mar foi-me restituído e os barcos voltaram para o horizonte, o céu mais ou menos azul com nuvens brancas lá está, um bando indisciplinado de gaivotas ruma para norte muito perto da minha varanda. Tudo seco e transparente.
Vou sair.
Os artistas querem realizar o que ninguém realizou ainda. Ir mais longe, transcender-se de cada vez. São os que inventam mundos e cenários, ou que estão mais próximos disso. E não esperam que os compreendamos. Ou esperam que os compreendamos.
Constituem o meu grupo preferido de mentirosos de que prometi falar.
Falarei de escritores, talvez os compreenda melhor, mas todos os artistas (o que inclui os escritores) são criadores.
De que estão eles a falar... pergunto-me, às vezes. Que querem dizer? O que estão a sugerir? O que projectaram?
Não posso deixar de me interrogar também deste modo: por que não dizem o que pensam de forma que toda a gente entenda? Por que recusam a linguagem comum?
Acredito que querem sempre dizer alguma coisa, mas querem dizê-lo de forma nova. O que procuram no seu trabalho é outra maneira de afirmar o que pensam, o que veem, o que sentem... As palavras/formas com que trabalham são vazias de sentidos (são signos da língua arbitrários, imotivados) e eles vão preenchê-las com significados novos; e os leitores ajudarão a perfazê-las, já que o sentido ou o significado se não produz sozinho. Tudo isto leva a incertezas, segundos sentidos, múltiplos sentidos.
O que eles inventam são sentidos novos para as velhas mensagens, se pensarmos que se trata de linguagens e que portanto há mensagens ocultas no que escrevem. E que é divertido decifrá-las.
As palavras têm, apesar de tudo, um sentido conhecido, que não é um sentido definido e único. Para os escritores, esse sentido, o do dicionário, não lhes interessa, com ele produziriam apenas uma escrita denotativa, não literária, não artística, sem sabor. A sua escrita não seria uma festa, como quer R. Barthes.
No entanto, os novos significados, os que inventaram ou combinaram de outra maneira (só os deuses inventarão a partir do nada), não podem ser inteiramente outros, sob pena de se não apreender nada do que é contado (o que acontece sobretudo com as artes plásticas): nada se pode modificar na língua, não é verdade? Por isso, a literatura que usa a língua, a linguagem da língua, não pode destruir completamente o velho significado das palavras.
Porém, faz desse problema um jogo – jogo de palavras que mais ninguém usa com o mesmo sentido. É por essa razão que é tão divertido escrever e dar a ler. Descobrir e escrever, ler e descobrir. E é tão divertido representar, pintar, esculpir… Não se está apenas a comunicar, está-se também a sugerir, a fingir que é verdade. Representar, comunicar, sugerir… escrever deste modo, não é tudo mentir?
Se eu acreditar na realidade como a verdade das coisas do mundo, posso dizer que o escritor está a mentir porque o que diz, o que escreve não corresponde à realidade do mundo: é outra ordem de realidade. É talvez a realidade da técnica que aprendeu!?
Além disso, ele tenta seduzir com os seus textos – o que é quase certo que não os aproxima da verdade.
Quero dizer, ele não é objectivo, isso cabe ao cientista, nem realista, embora o deseje e o tente, nem verdadeiro, isso é utópico. O escritor apreciaria ser livre para inventar uma escrita nova, mas isso não é realizável e aqui costuma citar-se Orfeu “que não pode salvar o que ama senão pela sua renúncia, e que se volta apesar de tudo um pouco”.
As palavras que usa conservam uma certa memória da língua, quero dizer, dos seus antigos significados, insisto, é esse resto que lhe permite inventar novos significados. E por essa razão também não é uma escrita inteiramente moderna.
Apenas isso?
O que é que o escritor acrescenta? Os seus saberes, penso.
Todos os saberes se podem encontrar numa obra literária. O que a literatura diz, segundo R. Barthes, é que “conhece alguma coisa desses saberes e sabe muito sobre os homens” e como põe em cena a linguagem em vez de simplesmente a utilizar, o saber é infinitamente reflexível. Através da escrita, diz R. Barthes, há continuamente uma reflexão sobre o saber, de forma dramática e não epistemológica (própria da reflexão sobre o saber).
Mas o escritor acrescenta também a sua história, a sua linguagem, a sua liberdade, diz Barthes.
O escritor mostra, apresenta, põe em cena… como se fizesse perguntas a que não dá resposta, embora algumas já levem resposta. Mas ele não tem que explicar nada, tem que fazer as perguntas certas e manter os olhos abertos.
Tinham razão as duas escritoras: Marguerite Yourcenar e Agustina Bessa-Luís.
Da minha longa experiência de vida, concluo que é possível, se me esforçar, manter um pensamento activo em todos os momentos, o que faz que me sinta útil e a contribuir com alternativas para a governação do mundo. Só isso! Talvez escolha cooperar para uma organização social com base no conhecimento.
Também posso deixar-me preguiçar tranquilamente e ficar feliz não pensando em nada e dando um sentido de mediocridade à minha vida. Quero dizer, alargar os períodos de tranquilidade e de meditação, de contemplação para lá de intervalos de descanso e cura de excessos, até quase esvaziar o pensamento... Acontece facilmente naquele período da vida, dito a velhice, em que tudo abranda, como diz Agustina - há um abrandamento na maneira de sentir, de ver, de andar...
Posso pensar que já dei o meu contributo e não preciso preocupar-me mais, não necessito esforçar-me por aí além. Posso ausentar-me, meio-adormecida, deixando tranquilamente morrer os neurónios, um a um…
Não tenho qualquer intenção de o fazer. As ideias surgem-me, muitas, arrebatadas numa barafunda. Parecem surgir do nada e, por alguma razão, me fazem lembrar as legendas nos ecrãs de cinema onde, vindas do nada, acabam por fazer sentido.
Entre parêntesis, devo dizer que não penso que posso fazer milhares de coisas diferentes que não são aquelas que me interessa desenvolver, sobre que me importa escrever e, no entanto, escrever. Não vou pensar que é possível, não é. Tenho as minhas preocupações e as minhas memórias. Ouvirei as minhas vozes ou o meu silêncio o que é o mesmo e farei as perguntas para que não encontro respostas. Isoladamente, sem entremetimentos. E então sim, poderei escrever.
O que acontece quase sempre é que as ideias soltam-se na cabeça e dançam desordenadas, trocam os passos, cruzam-se com desvairo, atropelam-se, até ficarem sem força, gastas, e esvaem-se. Não chegam a fazer sentido, a definir-se.
Tenho muito trabalho depois a pescar as que interessam e fazer de cada uma um novo modelo de desenvolvimento antes que desapareçam de todo: tenho que me esforçar por que ganhem sentido. Diverte-me que surjam assim em catadupa, vindas não sei de onde. Dar-lhes sequência lógica… é obra.
Por vezes não consigo, digamos, a maior parte das vezes não obtenho o que quero, isto é, escrever como ninguém escreveu antes, avançar o pensamento e a sensibilidade, cumprir um projecto. Isso causa-me sofrimento, como quando quero escrever e há as tais milhares de coisas sem valor para fazer.
E, sim, tudo acontece lentamente, agora, verifico por mim, comigo, mas posso manipular razoavelmente o meu pensamento. Posso pensar e aprofundar e levá-lo muito longe, esforçando-me. Ou deixá-lo morrer. Como quiser.
Posso juntar-me ao grupo mais interessante dos “mentirosos” – o dos artistas em que incluo os escritores. Pensei em Agustina e na Yourcenar, ambas admiráveis, muito inteligentes e cultas, mulheres que apreciaria interrogar.
Posso fazê-lo através dos seus livros e conversas. Agustina diz que tenta dar as respostas certas, Yourcenar acha que tem que manter os olhos abertos.
É verdade o que dizem… o que contam? Vou ver. Vou aprofundar.
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