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FOLHAS VERMELHAS

por Zilda Cardoso, em 29.08.12

 

 

 

A brisa passa leve pelas folhas  da árvore vermelha arroxeada.

Prendem-se organizadas nos ramos, os ramos no tronco.

Quase solto excepto pela raiz que fica longe dos ramos desatados.

Só um grande vento poderia libertar aquelas folhas seguras pelo apego de se manterem soltas, baloiçando, prestes a cair.

É assim que eu gosto de estar no mundo – apenas presa, apenas solta, ao sabor da brisa, ao gosto dela, hesitante, mudando de tom, à chuva e ao sol. Ouço daqui, ouço dali, viro-me num sentido e no outro, permanentemente ao abandono. Escutando?

Muitas coisas interessantes se ouvem enquanto pendurada: ninguém repara. Sou tão frágil como as outras folhas, mesmo as de outras cores, mesmo as de outras árvores. Tão pequena em relação a tudo, incólume: são sons, são ventos, que importa?

Eu fico, os outros se vão sem destino.

É um dia tranquilo, de ternura.

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publicado às 21:08

O poeta sírio Adónis

por Zilda Cardoso, em 26.08.12

Reli algumas das entrevistas incluídas em O Livro dos Saberes organizado por Constantin von Barloewen, de que já tenho falado.

Hoje, recordei a de ADONIS, pseudónimo de Ali Ahmed Saïd Esber, o grande poeta árabe moderno, nascido em 1930 no norte da Síria.

Licenciado em Filosofia, tem reconhecimento mundial como escritor. A sua preocupação maior parece ser a de abrir a poesia árabe à influência estrangeira reconhecendo que, se bem que apoiado no seu passado glorioso, deve reconhecer a riqueza da poesia ocidental.

Na entrevista, fala-se de livros – do sagrado e revelado e do da sua interpretação, fala-se de fundamentalismos, de modernidade e de tradições culturais e religiosas, de identidade árabe nos tempos modernos, de tradição e cultura, de literatura no mundo, de enraizamento e de nacionalismo, de liberdade e de libertação, de independência, de pátria. Fala-se de muitos outros temas estimulantes, e de poesia e da sua influência no mundo inclusivamente político.

Dá-me um gosto enorme falar com quem sabe sobre o que sabe, falar ou ouvir falar. Ou ler.

Os temas da entrevista são de tal modo apaixonantes e as respostas às perguntas do entrevistador são tão ricas que tenho muita dificuldade em sintetizar o que ali se diz, como gostaria.

Haverá uma oscilação entre tradição e cultura que dá à obra de Adónis a sua originalidade, segundo o entrevistador e com o que o autor concorda, afirmando que pertence a uma tradição que tem mais de cinco mil anos e também a uma tradição moderna. O que tenta é abrir a poesia e a identidade árabe a outras poesias, a outras identidades.

A este propósito, vou citar alguns pensamentos do poeta sírio.

“A viagem não é senão a metáfora do nosso futuro… Viajar é descobrir. É ir ao mais longínquo da nossa existência física, é ligarmo-nos ao desconhecido. É por esta razão que a viagem é um grande símbolo para mim, um símbolo poético, mas também um símbolo existencial.”

“A pátria para mim… nunca é finita. Uma pátria é como o amor, é como um poema, ela está a recrear-se perpectuamente, incessantemente a renovar-se”.

"A poesia tem sempre a última palavra a dizer, se é que há uma última palavra. A filosofia pode dar muitas ideias, muitas verdades, mas num determinado momento, num certo grau, já não tem respostas… já não tem mais nenhuma verdade a dizer…….

Quando as formas de conhecimento guardam silêncio, ou quando não há mais nada a dizer, resta a poesia… é a poesia que nos liga… ao que é essencial”.

“O que é divino no místico e no poeta é o que se pode imaginar num estado de iluminação vivido pelo homem. Ele torna-se transparente ou pode trespassar a opacidade do mundo”.

“Temos sempre necessidade de uma forma de pensar radical que ponha em questão toda esta cultura, sobretudo a cultura ligada ao segundo texto (ao de interpretação), e hoje não encontro sinais de pensamento que possam emergir aqui e ali no mundo árabe; e, assim, o futuro neste plano está, na minha opinião, em perigo.”

“Eu tenho a minha pátria na minha língua, na minha poesia, nas minhas amizades, no meu amor, e Damasco ou não me importa que cidade na Síria infelizmente não se parece com essa pátria.”

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publicado às 20:13

Escândalos reais e imaginados

por Zilda Cardoso, em 24.08.12

 

"Sem dúvida, as mulheres aborrecidas (de que fala Clara Ferreira Alves) não são de agora e provavelmente já não são do tempo da rainha Vitória. As mulheres aborreciam-se porque tinham pouco que fazer e com que se perturbar; agora têm muito trabalho e excessivas inquietações... e aborrecem-se.

 

Estimavam poder dedicar mais tempo a essa televisão de escândalos reais e imaginados transmitidos como efectivo entretenimento, mas com sólidos objectivos comerciais e políticos que ultrapassam ainda os de uma publicidade redentora e patriarcal; apreciavam ter tempo e sossego para ler mais literatura pop inadvertidamente editada apenas em milhões de exemplares e regularmente reeditada; e de ouvir ruídos de níveis de intensidade superiores, bradados pelos alto-falantes de qualquer discoteca - gostam de não se ouvir umas às outras, por isso, quanto mais alto e estridente for a atroada de fundo melhor.

 

Além de que o fragor de tantos decidéis impede que qualquer um pense por si ou descubra algo que interesse ao futuro da humanidade. O que deve ser bom, senão por que insistiriam tanto nesses procedimentos?

 

Como não podem comprar o tempo nem mesmo em saldos de fim de estação, as mulheres aborrecem-se. Acredito que desejassem mudar o mundo, mas não têm vagar para complexas intervenções: seria necessário repousar um pouco para reflectir, e reflectir demora tanto tempo! A sua vida passa a correr. Aborrecem-se."

 

(citações do livro Ana Augusta, ed. Campo das Letras, Porto)

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publicado às 11:10

Acho graça a esta cidade!

por Zilda Cardoso, em 21.08.12

Acho-lhe graça, a esta cidade: é medieval, é nebulosa, é melancólica, tradicionalmente tristonha, húmida e sombria.

Hoje não é nada disso!

Saí porque me disseram que era o dia mundial da fotografia e queria ir mais longe no meu passeio, de carro, para tentar apanhar uma imagem diferente, inteiramente nova, original... Grande projecto.

A cidade inundada de sol, de calor, sem pingo de vento, distante de festas tradicionais, com um lazer imenso e todo nosso para gozar, era assim: ninguém se tinha importado com o jornal nem com as suas notícias empastadas – nem sequer com as estratégias de manipulação que o Chomsky explica e que estão a ser usadas pela comunicação social.

O rio largo brilhava com cores esverdeadas e movimentos ondulados e os barcos quase rabelos e embandeirados circulavam com grande entusiasmo entre a foz do Douro e a ponte D. Luís, carregados de pessoas de sorrisos resplandecentes em férias.

Nas margens do rio, havia magotes de gente calcorreando a calçada, passeando ou correndo quase nus, patinados de azeitona e luzidios, e de bicicleta, de patins inline, de skate, e de carros esquisitos com dois pares de pedais. E com cães bem comportados.

Havia carrinhos de bebés e triciclos e cadeiras de rodas. Todas as gerações estavam ali representadas, um arraial, uma onda de gente colorida em movimento nos dois sentidos e que não se importava de ser vulgar e estrídula e de chamar a atenção. Sentavam-se nos muros, nos degraus, no chão, nos velhos bancos vermelhos dos jardins ou nos cinzentos de mármore e sofisticado “design”, nas cadeiras das esplanadas sob guarda-sóis brancos, reviam-se uns aos outros permanentemente. E refrescavam-se… com bebidas e gelados de cores e sabores doces ou ensossos.

Como seria uma afluência elegante aqui?

Na estrada, os autocarros vermelhos, amarelos e azuis (também havia brancos) e um elétrico histórico amarelo mostravam aos estranhos a cidade com o mesmo alvoroço, diria, empolgados como nas traduções/legendas dos programas de televisão: todo o mundo está empolgado que é uma palavra e um estado de alma em desuso.

Como tirar a foto que queria? Tinha de parar o carro, estacioná-lo algures e isso já era mais complicado.

Desisti da fotografia para gozar este empolgamento. “Que se lixe!”- diz-se também no mesmo estilo de traduções. Que se lixe, digo também.

Na tarde ardente para nós, embora possivelmente a temperatura do ar estivesse a 30º ou menos, ouvimos os motores dos carros que passavam lentamente querendo sentir-se participantes da euforia pedestre; e não ouvimos os aviões nem os grandes barcos do largo que se mantinham amavelmente em silêncio.

Sabíamos, portuenses, que eram de aproveitar as horas de uma tarde de domingo de Agosto, desta procura de emoções, já que, ao fim do dia, não haveria vestígios da actual exuberância: uma suavidade teria caído sobre o lugar…

Na manhã seguinte, quando cheguei à janela para as saudações habituais, um nevoeiro quase branco cobria tudo aquilo de que falei: não havia mar, nem esplanadas, nem árvores nem canteiros de flores e de beldroegas. Nem nada nem ninguém.

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publicado às 20:21

as minhas visitas a Serralves

por Zilda Cardoso, em 18.08.12

Ultimamente fico desgostosa com as minhas visitas às exposições de Serralves. Costumava vir de lá feliz, muito mais conhecedora, mais consciente do mundo que me rodeia, com o cérebro muito estimulado e portanto mais apta, mais autónoma, como se quer na Re Age – Saúde, Educação … e mais precisa na execução das minhas tarefas.

Esta é uma das razões porque frequento Serralves - as exposições, os jardins, os concertos, a biblioteca, a livraria, várias outras actividades excitantes e a casa de chá…

A Re Age de Oeiras propõe reensinar a viver os mais velhos e ensinar pela primeira vez mas doutra maneira os jovens; assim como a olhar e a pensar. Tem técnicas inovadoras, ideias modernas, programas divertidos para toda a gente.

E é um ponto de encontro absoluto, quero dizer, para todas as pessoas de boa vontade por mais diferentes que sejam.

Longe de Oeiras, tenho estado a fazer de Serralves uma Re Age.

Porém, algumas exposições ultimamente só me fizeram zangar. Aquilo era o quê? E pedi explicações que não me convenceram.

Há muito que explicar antes de ver. Antes de mais, o conceito. E a definição de arte e de obra de arte e de artista. Temos que saber se vale a pena despender tempo e energia com o que nos é mostrado.

Hoje agradaram-me as duas mostras, a de Marijke van Warmerdam e ade Nedko Solakov.

Posso dizer que toda a Casa recebe as obras de Nedko Solakov, búlgaro, que mostrou como quem escreve a sua biografia, obras de 30 anos de trabalho.

Muito bom e voltarei para ver com tempo, muito cuidado e boa disposição e falarei sobre isso.

Marijke van Warmerdam que vive e trabalha nos Países Baixos, mostra o seu trabalho em várias técnicas - cinema, vídeo, fotografia, escultura e linguagem. E gostei de ler que a artista “concentra a atenção do espectador na beleza simples do quotidiano, mostrando como há sempre algo de extraordinário no que usualmente consideramos trivial”.

Creio que é a primeira vez que qualquer deles expõe em Portugal. E, sim, desta vez, recomendo uma visita demorada a qualquer das exposições com a certeza de aí aprendermos a ver e a viver de outra maneira, interessante e divertida.

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publicado às 20:05

É a falta de cultura, estúpido

por Zilda Cardoso, em 15.08.12

 

Agradeço aos amigos que me enviaram a crónica com aquele título de Clara Ferreira Alves, publicada no Expresso, há algumas semanas. Apreciei-a como outras da mesma autora, tanto como admiro intervenções suas em programas de Televisão. Acho-a inteligente, culta e conhecedora dos problemas de política nacional e internacional. E é muito aguerrida como convém a jornalistas com as suas características e prestígio.

Escrevo retomando um pouco o seu tema e mesmo parafraseando-o. Quero, no entanto, dar a certeza aos que me lerem de que o que me orienta é um desejo de entender o mundo. Só tenho um tema em mente quando escrevo. Sempre. Posso falar de valores e de vontade de participar e de conhecer, doutras coisas, mas o que pretendo no fim é o entendimento do mundo. Posso tomar partido sobre aquilo que acontece à minha volta ou longe de mim, coisas boas coisas más, mas não pretendo ter ciência do que o mundo significa nem acho que alguém tenha. Desejo aproximar-me das respostas certas e isso será o máximo que alguma vez alguém conseguirá alcançar. E será muito bom.

Clara Ferreira Alves diz o que pensa e diz bem, num texto realista vs pessimista. As suas palavras suscitam algumas reflexões (que mau seria se não... ).

Portugal tem hoje uma pequeníssima elite que consome cultura, quase toda velha e sem sucessores”. (A élite pequeníssima é que é velha?) É verdade. E precisava Portugal de ter uma grande élite? Era melhor se tivesse? E o mais importante: a que cultura se está C.F.A. a referir?

Nós merecemos isto. Nós elegemos esta gente. Nós não somos muito diferentes disto”.

“…convém não esquecer o que nos separa, exactamente, do Relvas. Pouco”.

Já houve mais Relvas, outros, pois já. Onde já ouvi contar histórias semelhantes?

Nada distingue hoje a burguesia do proletariado. Consomem as mesmas revistas do coração, lêem a mesma má literatura (que passa por literatura), vêem a mesma televisão, comovem-se com as mesmas distrações”…

O que mais me impressiona é que, se fosse a mesma televisão para todos, mas boa, se tal como é apresentada pudesse participar de um “sistema coerente de pensamento”… É bem verdade que não e é o que mais me impressiona... pela importância que o meio assume nas nossas vidas. Rasa-nos no nível zero.

Por outro lado, se somos todos tão iguais por que razão nos há-de incomodar a má literatura? E a péssima televisão? É má, é péssima? Em relação a qual? E é natural que haja falta de estrelas na élite portuguesa, é natural que não haja sequer élite, se somos todos tão iguais...

Escritores comunistas mostram a estupidez dos reis e a inteligência dos proletários, mas sabemos que nem todos os reis são estúpidos nem todos os proletários são inteligentes, nem sequer a maioria. O partido comunista tinha uma élite intelectual e discutia Shakespeare? Pois, bons velhos tempos de ideais. Passaram, claro.

“… o partido comunista tinha uma elite intelectual e de resistência inspirada por um chefe que, aos 80 anos, quase cego, resolveu traduzir Shakespeare. Cunhal traduzindo o "Rei Lear" de um lado, Relvas posando nas fotografias ao lado da bandeira do outro. Relvas nem personagem de Lobo Antunes, o descritor da tristeza pós-colonial, chega a ser. É um subproduto de telenovela”.

Não há chefes cultos, há subprodutos de telenovela, gostei. Gostei mesmo da classificação. Não acontece apenas em Portugal… melhor ainda.

O que me leva a pensar que talvez não seja necessário ser culto, pelo menos, dessa maneira. Ganhou a cultura de massas. Deve estar bem, se a grande maioria prefere e elege a cultura de massas. É o que merecemos, então. Nas sociedades democráticas prevalece a opinião da maioria. É ela que comanda que dá o tom, são os “consumidores que votam” os que vencem, os que conquistam, os que derrotam.

A cultura de massas ganhou. No mundo pop, multimédia, inculto e narcisista, em que cada estúpido é o busto de si mesmo, a burguesia e o lúmpen distinguem-se na capacidade de fazer dinheiro. Acumular capital. O dinheiro, as discussões em volta do dinheiro acentuadas pela falta de dinheiro, fizeram do proletariado (e desse híbrido chamado classe média) uma massa informe de consumidores que votam".

História. Filosofia, Física, Álgebra, Literatura… deviam dar um sentido à nossa vida? Que ideia! Para que é preciso tudo isso? Ou algum desses luxos? Arte? Criatividade? Mas sim, há muita arte e criatividade, é preciso que haja para saber somar como deve ser, acumular dinheiro… Acumular? É preciso saber matemática para contar o dinheiro?

Meninos, aprendam, pelo menos, a ganhar facilmente e a consumir: sejam “consumidores que votam”! É preciso consumir para ter sentido produzir, é preciso produzir para ter sentido consumir. Para já, consomem “os direitos fundamentais, como consomem televisão, pela imagem”. Aprendam o sistema das comissões para chegarem mais depressa lá onde querem chegar. Porém as comissões, quando não há transparência, levam direitinho à corrupção, talvez devam pensar nisto.

Uma vez mudado o regime político para democracia, precisamos inovar a educação. Em Portugal, mudámos, há quase 40 anos, o regime. Que mudança radical teria que ter havido para que neste momento soubéssemos tomar as decisões certas? E precisamos de saber argumentar, defender os nossos pontos de vista com razão à maneira do Velho Grego e não com sofismas.

E o que nos ensinam com mais afinco? C.F.A. lembra a gastronomia, aliás, a comida, acerca de que há muitos e longos programas na TV todos os dias.

Qualquer artista trabalha para o mercado, tal como o jornalista, não é? "Sócrates e o Armani, Passos Coelho e a voz de festival da canção. Nós, e quando digo nós, digo o jornalismo na sua decadência e euforia suicidária, criámos estas criaturas. Os Relvas, os Seguros, os Passos Coelhos, os amigos deles”. E os inimigos, provavelmente.

Alguns desses programas são muito bem-feitos e extremamente variados quanto aos cenários e aos protagonistas/artistas, aos lugares, aos ingredientes, aos sabores…

É um assunto complexo, este, temos de concordar, pois o que consumimos/comemos é caso de vida ou de morte e questão filosófica por excelência.

 

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publicado às 15:29

Qu'est-ce que la politique?

por Zilda Cardoso, em 04.08.12

 

Eram quatro da tarde quando Agustina entrou. Foi um alvoroço entre as amigas reunidas no salão.

Trazia as suas roupas invulgares, o penteado desusado, o xaile nos ombros, e nos braços o cão de estimação com um laçarote ridículo na cabeça. E que logo saltou para um dos meus cadeirões de ainda maior estimação.

Tinha-a convidado para o chá, se bem que ficasse preocupada por não saber preparar nem servi-lo tão bem como em sua casa.

O que me maravilha é que o seu chá não pode ser mais simples: torradas cheirosas de pão especial, compota inglesa, mel… Nunca e em nenhum sítio o chá me sabe tão bem como lá: há um mistério e um segredo que não revela.

O importante é que ela se instalou com gosto no meu espaço, descontraiu e comentou. Comentou o livro sobre a mesa de apoio, a pintura de Elvira Leite na parede e as gaivotas aos gritos ao longe.

O livro era A Sibila, mas podia não ser. Era. Surpreendi-a dizendo-lhe que o livro dela que mais apreciei ler foi um de viagens, a descrição de uma viagem, Embaixada a Calígula.

Tinha sido convidada a participar num congresso de escritores ilustres em Aix-en-Provence e havia um tema que deviam discutir - o destino da Europa. Reuniam-se num castelo, pelas tardes, e debatiam esse tema que Agustina classificou de acabrunhante.

É um livro maravilhoso que releio a cada passo. Revela a sua enorme inteligência, a sua cultura e sabedoria e tem a vantagem de não ter enredos.

Ela olhou atentamente a pintura a óleo espesso da Elvira que representa três mulheres, unicamente três mulheres firmes, seguras, finas, perspicazes num quadro enorme. Comentou a sua força e a sua fragilidade, as belas tonalidades pastel, as pinceladas expressivas. “Estas, sentadas, dominam o mundo”, disse.

Acabámos esclarecendo o mundo, precisamente – entre o caos mesmo esplendoroso de Eduardo Lourenço e a tranquilidade harmoniosa dos seus textos; entre os gritos das gaivotas perto do mar e a música de Bach tão próximo, aqui.

No fim, uma pergunta insólita ficou: Qu’est-ce que la politique?

 

 

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publicado às 17:47

O vale do Côa

por Zilda Cardoso, em 03.08.12

 

 

 

  

 

Fui dar um passeio pela região e andei sempre naquele deslumbramento… De todos os ângulos de que se possa espreitar, a paisagem é magnífica.

 

 

 

Há vestígios de ocupação muito antiga, desde a Idade do Cobre ou do Bronze, e da do Ferro à época dos suevos e dos visigodos e à romana, e também aos mouros e depois à cristã da Reconquista.

 

 

 

Penso que há muito pouco descoberto em relação ao que poderá haver oculto e a necessitar de escavações especializadas.

Há uma via em Penascosa que levaria a Almendra e há a vila romana de Orgal que poderão ser vistas, mas eu não vi. O que vi e apreciei e me deixou encantada foi a paisagem e lugares como a Santa Bárbara e o Anjo, a Senhora do Campo, as quintas do Cristóvão e a da Erva Moura, bem arranjadas e em plena produção, montes e vales admiráveis e o rio Côa com os seus recortes e as suas margens.

  

 

Corre de sul a norte na margem esquerda do Douro, vem da serra da Malcata para o Pocinho por um vale que as suas águas cavaram profundamente e onde, numa extensão de 17 quilómetros, existem gravuras rupestres.

  

 

 

É território de grande biodiversidade, mas não vi as grandes aves das escarpas que existem aqui, talvez não fosse boa ocasião.

 

 

(Agradeço aos grandes amigos que me proporcionaram estes passeios que me não teria sido possível fazer a pé).

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publicado às 20:07

Singing in the rain

por Zilda Cardoso, em 02.08.12

 

 

 O céu azul de Castelo Melhor está mais carregado de azul do que é costume e mais do que qualquer outro céu. Não há poluição por aqui, excepto, a do curral das ovelhas dentro da aldeia e que rescende ao longe e agride.

 

 

 

Esquecemos isso, depois de passar para além, mas não devíamos esquecer: um só curral polui um espaço antes maravilhoso e o acontecimento passa impune, talvez porque os possíveis queixosos têm medo de vinganças torpes. Mas todos são prejudicados.

Raramente há nuvens em pleno Verão. Naquele dia, havia algumas brancas e brilhantes. E depois apareceram as cinzentas de vários tons.

Queríamos ir à horta, fora dos limites da aldeia.

Não há em Castelo Melhor nenhuma rua direita, plana, horizontal. Ou se sobem ou se descem ladeiras, quelhas, encostas…

Desse modo, fomos subindo e descendo até ao lugar dito da Horta onde não havia couves nem cenouras, nem feijões nem tomates nem qualquer desses legumes miúdos. Quando são precisos, vai-se ao supermercado a Foz Côa comprar!

Havia árvores – oliveiras, amendoeiras, figueiras a precisarem desesperadamente de água. Nunca há que chegue, nunca há nada que chegue, a terra é pobre, falta tudo, por isso as pessoas abandonam e vão trabalhar para França, para a Suíça, para a Alemanha, para o Canadá…ou simplesmente para Lisboa e para o Porto.

Quem quer ficar ali e andar a mendigar uma gota de água…? Invocar isto ou aquilo? Já se não fazem procissões… para ter água para dar vida ao que se há-de comer... se crescer.  Muito retorcido.

As pessoas saíram - aconteceu durante anos - e em Castelo Melhor restam os que se reformaram dos seus trabalhos algures e voltam para a terra. Actualmente, estes constituem a maioria, os jovens são muito poucos, crianças quase nenhumas.

Por isso, há um bom Centro de Dia que fornece refeições bem preparadas e as serve no próprio salão ou em casa dos que precisam. E fazem limpezas e prestam outros serviços. E há um Centro de Saúde onde médicos e enfermeiros dão consultas regularmente, receitam medicamentos e análises e exames complicados.

E há a vila de Foz Côa onde tudo o que é importante acontece, desde o Supermercado à Farmácia, das camionetas para o Pocinho aos táxis para todo o lado, da confeitaria ao restaurante e ao hotel, do Museu do Côa muito bem desenhado e instalado à Casa de Artesanato onde se podem adquirir produtos da terra.

O céu começou a ficar carregado, desta vez, de nuvens de água. Trovejou forte, relampejou e a desejada água começou a cair, a direito, por cima de nós, vestidas de Verão. Tínhamos chapéu para o sol que mal tapava a cabeça e um casaco de algodão fino.

A primeira ideia, foi abrigar-nos debaixo de uma árvore, mas lembramo-nos do perigo das faíscas atraídas pelas árvores. Então apreciámos tranquilamente a chuva… depois de alta temperatura ininterrupta e seca durante dias… a chuva, a delícia da chuva sobre a cabeça, os cabelos a escorrer água fresca para os ombros…!

Lembrei-me de Gene Kelly, de singing in the rain que ele canta e dança com uma alegria esfusiante e feliz no velho filme Serenata à Chuva. Penso que foi um momento alto da sua carreira e da dos outros protagonistas Debbie Reynolds e Donnald O’Connor. Para mim continua a ser um filme de culto, o melhor musical que já vi e que não me importava de rever todos os dias como quem toma um comprimido de alegria pela manhã.

Alegria simples e contagiante está lá sempre, parece verdadeira e pronta a fazer-me saltar e cantar.

Apanhámos a chuva sem reservas e voltamos a casa cheias de sorrisos para mudar de roupa, tomar um chuveiro quente e um chá de hipericão, pelo sim pelo não.

Reparámos que todas as plantas, mesmo a oliveira velha, sorriam.

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publicado às 15:14

a aldeia de Castelo Melhor

por Zilda Cardoso, em 01.08.12
 

 

No dia anterior, tínhamos marcado para as 6,5h da manhã, pensando na inquietação do calor, se… mais tarde. Algum tempo depois, passámos a combinação para as 7,5 e seguidamente para as 8.

Acabámos por sair às 8,5.

  

 

Subimos a encosta íngreme carregando o sol às costas com muito esforço e coragem.

Lá fomos. Parávamos de vez em quando, bebíamos uns goles de água, até à entrada na cerca, em cima, onde tivemos o costumado deslumbramento.

Andamos em todo o redor: eu queria ver tudo e fixar imagens. Elas, as acompanhantes, perguntavam:”Que viemos aqui fazer? Não há nada para ver?! Os muros estão no chão, a cisterna seca e cheia de silvas… Há as fragas do costume...”

 

 

Soubemos por que lemos que o local foi ocupado por um castro pré-romano e que Afonso IX de Leão o reconquistou para os cristãos no início do século XII. Deu-lhe foral e reconstruiu a muralha de defesa. D.Dinis disputou as terras de Ribacoa e pelo tratado de Alcanices (1297) assegurou a sua posse definitiva para Portugal. Confirmou o foral leonês e reforçou a defesa melhorando o castelo com um Portão da Vila e dois torreões quadrangulares, além de manter a antiga muralha reforçada com um torreão adossado. D. Fernando no século XIV e D. Afonso V mais tarde cumpriram alguns melhoramentos. A povoação foi doada à família Cabral e elevada a condado no século XVII, e no XVIII a marquesado, mas nem a povoação nem o castelo sofreram muito com isso.

 

 

Continua tudo muito primitivo e modesto e apenas uma casa na aldeia tem um ar de certa imponência – é um solar estreito no meio da povoação com um paçadiço para a casa oposta na rua paralela, decerto para aumentar a dimensão da casa que tem na fachada principal janelas e portas guarnecidas de pedra recortada e bem trabalhada. Está caiada de branco e vem sendo ocupada pela mesma família há várias gerações.

Gosto da Casa como não gosto das outras casas da aldeia nem das feitas de novo nem das reconstruídas. No aspecto estético e noutros, a aldeia é um caos. Talvez devesse haver dois ou três projectos de arquitectura a que todas as construções obedecessem. Assim como quanto aos materiais a usar. Concordariam com as tradições tão longamente seguidas e adeririam à modernidade e à funcionalidade sobretudo no seu interior onde seriam indispensáveis.

  

Os proprietários teriam apoios, naturalmente, sobretudo apoios de informação.

Então, a aldeia seria uma joia de preço inestimável. Não apenas as gravuras rupestres lhe dariam interesse e chamariam visitantes realmente empenhados em conhecer, mas toda a aldeia, tão pequena, seria parte dessa importância.

 Do Castelo como sempre, todos contemplariam a espantosa obra da Natureza e aquela que os Homens executaram: eles aproveitaram os montes e os montinhos, os rios e os riachos lá desenhados e os vales e embelezaram à sua maneira, tirando proveito do existente e do que plantaram, quero dizer, das oliveiras, das amendoeiras, da vinha.

 E tudo ficou admirável, em todas as perspectivas, de qualquer ângulo.

 

 
 

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publicado às 13:33




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