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Arte... ou o quê?

por Zilda Cardoso, em 30.04.12

 

Por que haveria eu de querer saber o que é arte?

 

"Hoje em dia a ideia de definirmos arte é tão remota que não acredito que alguém tenha coragem de fazê-lo".

 

A verdade é que quero e gostaria de partilhar convosco as conclusões da minha precária investigação.

 

Na enciclopédia livre, Wikipedia, está muito clara a definição: técnica ou habilidade, é uma manifestação de ordem estética ou comunicativa a partir da “percepção, das emoções e das ideias, com o objetivo de estimular essas instâncias da consciência e dando um significado único e diferente para cada obra”.

 

 

No início da História, a arte teria funções mágicas e rituais. Ao longo dos tempos adquiriu outras funções e tão diferentes que, apesar dos grandes debates actuais, continua indefinida.

Até há pouco, ainda considerava que a arte devia ter características criativas e estéticas. Mas depois de ver em Serralves a mais recente exposição ou o que é de Artur Barrio, mesmo essa ideia simples se desvaneceu.

O que é o que está na sala central do Museu de Serralves?

 

 

 

 

Quero dizer, é criativo… mas estético?! Tem função sociológica, lúdica,religiosamoral, experimental, pedagógica, mercantil, psicológica, política e ornamental como foi sugerido?

Fiquei a saber que a definição é uma “construção cultural” variável e sem significado constante  nem sequer numa mesma época nem numa mesma cultura.

Reproduzo aqui alguns aspectos de que se fala no texto consultado:

  • a manifestação de alguma habilidade especial;
  • a criação artificial de algo pelo homem;
  • o desencadeamento de algum tipo de resposta no ser humano, como o senso de prazer ou beleza;
  • a apresentação de algum tipo de ordem, padrão ou harmonia;
  • a transmissão de um senso de novidade e ineditismo;
  • a expressão da realidade interior do criador;
  • a comunicação de algo sob a forma de uma linguagem especial;
  • a noção de valor e importância;
  • a excitação da imaginação e a fantasia;
  • a indução ou comunicação de uma experiência-pico;
  • coisas que possuam reconhecidamente um sentido;
  • coisas que deem uma resposta a um dado problema.

Não pode ser mais vago. E será subjectivo.

 

 

 

“A arte expressa o que não existe e indica a possibilidade de transformação e transcendência”.

Será "expressão" onde “fins e meios se fundem numa experiência agradável”.

“Arte é a interpretação da verdade.

“Expressa uma forma de fazer que ao mesmo tempo inventa a sua própria linguagem e os seus meios”.

Também fiquei a saber depois desta visita a Serralves que a arte não seria o resultado de um projeto determinado antes, mas encontraria simplesmente o seu resultado no processo de fazer. Penso que é isso que se pode ver na sala central …Navegações/Divagações… por entre escolhos e baixios….

E a obra de arte só existe na sua interpretação, na abertura de múltiplos significados que pode ter para o espectador, segundo a ideia conhecida depois de Umberto Ecco.

 

 

“Consagração institucional, autoridade, ou resposta do público ou de pessoas consideradas peritas”, pode ser uma forma de definir.

Ou assim: "um objeto artístico é em primeiro lugar um artefacto, e em segundo, um conjunto de aspectos que legitimou a sua proposta de merecer atenção especial de alguma pessoa ou pessoas agindo em nome de alguma instituição social".

A questão “foi chamada de arte pelo 'sistema de arte'? Em nosso século, isso é tudo o que é preciso para definir arte".

Arte é qualquer coisa "que foi criado com o fim expresso de ser considerado como tal e foi colocado em um contexto em que é visto como tal".

Finalmente, a definição da Encyclopedia Britannica: arte é aquilo que é criado deliberadamente pelo homem como uma expressão de habilidade ou da imaginação.

“Parece bem claro que hoje em dia mais ou menos qualquer coisa pode ser chamada de arte”.

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publicado às 15:42

Meditações

por Zilda Cardoso, em 27.04.12

 

 

 

De vez em quando, necessito voltar a ler ou a ouvir ensinamentos de mestres na arte de viver.

 

É o que faço com alguma frequência. E gostaria de partilhar convosco este meu interesse, que me parece ser o de toda a gente, parece-me ser a bem de todos.

 

Tenho comigo um livrinho Meditações do Dalai Lama, edição Martins Fontes, São Paulo 2002. É uma compilação, um volume muito pequeno, que resume o pensamento de uma personalidade respeitada e amada em todo o mundo: ele, ELE, que tocou o coração das pessoas independentemente de crenças religiosas e políticas.

 

Dando a conhecer as suas ideias, posso contribuir para inspirar outros para que vivam melhor e ajudem a viver melhor.

 

 

 

“Devemos ter alguma forma de política. Política é uma forma de resolver conflitos. A política que vem de uma motivação sincera é construtiva”.

“Todo o mundo adora falar sobre calma e paz, seja na família, no contexto nacional ou internacional; mas sem paz interior, como podemos chegar a uma paz de verdade? Paz mundial através do ódio e da força é impossível”.

“Devemos adoptar uma perspectiva mais ampla e sempre encontrar coisas em comum entre os povos do norte, do sul, do leste e do oeste. Os conflitos surgem com base nas diferenças”.

“As fontes básicas da felicidade são um bom coração, compaixão e amor. Se tivermos essas atitudes mentais, mesmo cercados por hostilidade, sentiremos pouca perturbação. Por outro lado, se nos faltar compaixão e nosso estado mental estiver cheio de raiva ou ódio, não teremos paz”.

“A verdadeira prova de honrar os Budas ou Deus é o amor que se oferece aos nossos semelhantes”.

“Raiva e agitação deixam-nos mais susceptíveis à doença”.

“A minha religião é a bondade. Uma boa mente, um bom coração, sentimentos calorosos – estas são as coisas mais importantes”.

“Às vezes, a religião torna-se uma fonte a mais de divisão e até de conflito aberto. Por causa dessa situação, acho que as diferentes tradições religiosas têm uma grande responsabilidade em proporcionar paz mental e um senso de fraternidade entre a humanidade”.

“A fim de alcançar paz genuína e duradoura no mundo com base na compaixão, precisamos de um senso de responsabilidade universal. Primeiro, precisamos de tentar o desarmamento interior – reduzindo nossa raiva e ódio enquanto aumentamos a confiança mútua e a afeição humana”.

 

 

 


(Imagens de José Miguel Vieira na sua viagem à Tailândia)

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publicado às 09:02

Canhões no jardim do Calém

por Zilda Cardoso, em 23.04.12

Se bem que goste de vir aqui e venha com muita frequência...

 

 

 

por causa do rio... pelos pássaros... por causa do jardim... pelas pontes... pelo estuário... pela junção das águas da ribeira, do rio, do mar... pela paisagem do outro lado...

 

 

 

 

sempre deploro isto.

E pergunto: é admissível canhões bélicos pousados sobre as flores brancas do relvado? As que nascem ali sem ninguém semear? Que nascem lá porque querem e gostam de estar? Que são frágeis e brancas, ingénuas e minúsculas? Que ficam bem na cidade junto dos pombos de paz que não são brancos mas podiam ser?

 

 

 

 

 

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publicado às 15:37

O velho e as histórias que conta

por Zilda Cardoso, em 22.04.12

 

 

 

 

 

 

Mesmo nos livros recentes, nas mais modernas escritas, pode haver um velho que conta histórias.

Então, pode pensar-se que os velhos gostam de contar histórias. Sobretudo, histórias de viagens. Epopeias. Não sei.

Vou reproduzir alguns versos do livro Uma Viagem à Índia, uma "aventura dramático-burlesca" como lhe chama Eduardo Lourenço, de Gonçalo M. Tavares,  que fala de um  velho.

E das histórias que efectivamente conta.

Mas ler as histórias do G.M.T. que é jovem,  é por de mais divertido. É muito mais divertido que qualquer outra coisa que alguém possa contar.

 

 

 40

Por vezes Bloom gosta de ouvir dos

velhos sábios histórias alegres. E

assim comprova que no passado também

existiu alegria, e que esta não surgiu

com a electricidade, como alguns

 defendem. Grandes paixões e ódios,

com mais frequência ocorrem

depois da meia-noite. E tal não é uma prova,

mas uma consideração.

 

…………

42

E contar histórias de amor para preparar soldados

para a guerra é o mesmo que apontar a arma

para si próprio – nenhum general comete erros desses.

Bloom, diga-se, também não gostava de narrativas

amorosas: ao lado, agora, de um velho sensato,

pediu, pois, uma história que se pudesse escutar

ao mesmo tempo que se bebe um vinho tinto

e viril. E assim foi.

 

43

Escutar uma boa narrativa é aproximar-me

mais da Índia, pensava Bloom. E o velho,

amigo recente, começou, então,

a contar uma história. Fazia frio, fazia vento,

contou o velho, mas um exército levantou-se

inteiro de uma vez e tão sincronizado como

se fosse uma pessoa só. E porque fazia frio

e fazia vento,

e ainda para rectificar pormenores no mapa,

esse exército declarou guerra a outro.

 

..........

 

 

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publicado às 18:47

A névoa, de manhã

por Zilda Cardoso, em 21.04.12

 

 

 

A névoa cinzenta  translúcida

humedece telhados e ruas e varandas

o rio rochas velhas

árvores cerradas

 

Gaivotas sobrevoam sem oriente

 

A água… há por ali, não cai livremente

Toca ao de leve na realidade

E cede tudo embebido e diferente

De outra cor de outra textura

 

Divergente.

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publicado às 13:09

Um amor de chuva

por Zilda Cardoso, em 18.04.12

Se eu soubesse quem superintende nestes problemas, dirigia-me a ele, directamente. Escrevia-lhe e colocava o assunto que me preocupa com muita clareza e consideráveis detalhes. Por que ele é importante, o tema.

E muito valioso.

 

 

  

 

 

Estou à espera que caia no mundo, à superfície da Terra, quero dizer, uma chuvada monumental, com força, uma chuvada que lave o meu carro empoeirado. Não peço muito: sei que basta um aguaceiro dos bons e ele ficará a reluzir. E também me dou conta da importância deste acontecimento, espero que toda a gente entenda.

No fundo, o que precisava que acontecesse é muito simples. Precisava que a água aquecida evaporasse e se transformasse em vapor de água que, misturado com o ar subisse, formasse nuvens carregadas e escuras.

(Um dia destes, houve aqui uma nuvem espessa inteiramente negra que eu julguei - agora, sim, vai cair - e depois soube que era óleo queimado no porto de Leixões).

O vapor de água das nuvens condensa ao atingir altitudes elevadas ou ao encontrar massas de ar frias, transformando-se novamente em água que é pesada e cai como chuva.

Era isto. De mais a mais, no meu sítio, onde deve haver um alto índice de evaporação da água, deviam ocorrer chuvas com muita frequência.

Há quase sempre nuvens, mas chuva… este ano, não estou a ver. Há grandes ventanias, mas nada de trovoadas nem de relâmpagos. As nuvens têm agora sinalizações que evitam os choques entre elas, carregadas de água e energia? Deve ser, porque não chocam.

Dizem que as estações meteorológicas conseguem prever as chuvas, observando as imagens de satélites que mostram a posição e o deslocamento das massas de ar. Considerando vários fatores, dizem prever as horas futuras em que vai chover. O que tem acontecido ultimamente deixa supor que devem ter que mudar os considerandos. Nunca acreditei.
Sei que na minha zona, por um lado, não há grande indústria, por isso, ainda bem, a chuva, a cair, não será ácida, mas doce ou básica, é muito bom. Se bem que toda a chuva seja minimamente ácida, porque contém ácido carbónico em mínimas quantidades, os efeitos ambientais da chuva considerada ácida são notáveis e levaram a medidas que restringem a queima de combustíveis ricos em enxofre.

 No centro de uma cidade muito poluída, a chuva cheia de poluentes pode causar danos aos monumentos históricos. Mas nesta, tão perto do mar e com uma dimensão não exorbitante, quaisquer árvores dos jardins especialmenteas japoneiras estão tão felizes como os amores perfeitos que vi belamente floridos de amarelo, branco e roxo ao longo das ruas, nesta Primavera.

Com o mar tão perto e o rio, não teremos portanto chuva ácida, embora repare que muitas vezes as gotículas no vidro não são transparentes, mas cinzentas.

Por outro lado e seja como for, há pessoas desmedidas que pedem coisas insignificantes ou antes que só têm significado para elas como os agricultores que, é sabido, nunca estão satisfeitos em relação a este problema: ou é demasiada chuva ou é pouca. Ou o sol é de mais ou não há sol que sobre. O granizo cai e desfaz os brotos e não vai haver colheita ou o vento leva na sua frente as preciosas pétalas que protegiam os rebentos. E nada vem quando é preciso, segundo eles, se bem que os produtos naturais tenham necessidades diferentes em tempos diferentes.

Porém, o meu pedido deve estar em primeiro lugar: eu só quero uma coisa simples. Quero não desperdiçar água da torneira, da Companhia, quero aproveitar a que cai e vai directamente para o bueiro (se no caminho se não aproveitar).

É um pedido razoável neste tempo de crises várias, só me falta alguma informação como - quem superintende nisto?

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publicado às 17:43

retrato do artista enquanto jovem

por Zilda Cardoso, em 14.04.12

 

 

 

Não aprecio os retratos que os artistas fazem de mim. E com isso ponho os criadores em estado de revolta e de exaltação.

Eles têm razão: eu não observo suficientemente o espelho: não me conheço.

Talvez devesse olhar mais para o reflexo sem receio. Seria então uma visão do exterior? Por isso, semelhante à dos outros, artistas incluídos?

Não sei.

Não me tem interessado olhar para o espelho, demais ultimamente, mas, sim, through the looking glass para o outro lado, para o que está por trás...

O que vejo?

Objectivamente, muitas coisas, mas quem se interessa pelo que penso, o que se me afigura, o que imagino, o que invento, o que descubro… Isso poderia ser o mais sedutor e, pelo menos, razoavelmente curioso.

Porventura se importariam com os pedaços de ondas de espuma branca criadas pelo vento norte, pelas ondas sem espuma, pelo movimento simples da água… se pudessem ver o que se imagina a partir daí?

Agora, sentada nos degráus ao abrigo da nortada, olhando o mar em fúria, penso como é fascinante e por que é fascinante olhá-lo mesmo zangado e imaginar porque estará assim danado, questão de ventos e de marés, com certeza. Não é nada comigo, não é nada que eu possa ajudar a resolver. Por isso, me desinteresso. Desinteressamo-nos.

Aquele retrato, visto o meu rosto de fora para dentro, podia estar bem. Foi lamentável a minha amiga húngara, que é pintora e encantadora, tê-lo destruído.

Adoraria vê-lo neste instante, tantos anos depois, que importa o que eu disse na ocasião.

Agora ela devolveu-me fotografias diversas que eu lhe tinha emprestado para ajudar a estabelecer os traços. E eu fiquei enlevada a olhá-las e a tentar recordar o momento, os momentos que foram todos festivos.

Como seria eu então por dentro? As fotografias dirão melhor do que as pinturas o que se passa?

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publicado às 20:24

Chuva que não cai

por Zilda Cardoso, em 13.04.12

 

 

 Sempre gostei de vê-la cair batendo leve, levemente nos vidros da janela ou fustigando-os levada e empurrada pelo vento agreste. Achei, quando chove, que alguma coisa importante estava a acontecer, não estávamos para aqui, esquecidos.

  

 

Sempre desejei ver a chuva, senti-la directamente sobre mim desde a nuvem, molhando-me os cabelos e os ombros, tombando do nariz em pingos grossos ou escorrendo em fio, as roupas encharcadas, os pés a chocalhar nos sapatos cheios de água... E que alegria saltitar nas poças com botas de borracha calçadas!

 

Sinto-a como uma bênção: do céu não caem só estrelas. Cai água benfazeja, tão querida para tudo: para fazer crescer as plantas na horta e as flores no jardim e para sumir a tensão do ar e ficarmos tranquilos, os humanos e os outros.

 

Alguém que está lá em cima e vê melhor, tem melhor perspectiva e distância, sabe sempre quando ela deve vir. Em tempos de tradição, achava-se que valia a pena lembrar que ela era precisa. Para isto e para aquilo. Organizavam-se procissões, invocavam-se os deuses. E acontecia. E todos ficavam felizes: era uma coisa sagrada e mágica.

  

  

Ontem no Porto vi um rolo de fumo escuro e espesso e pensei, de tal modo estamos agora obcecados com a necessidade da chuva, que vinha aí uma tempestade torrencial. Mas quê…! Nada disso. Era um incêndio enorme na doca de Leixões!

Como pude imaginar chuva ali?! Daí a pouco, todos os sinais tinham desaparecido, o céu estava azul.  

O interessante é que os meteorologistas anunciam a precipitação de gotas de água proximamente, desde há muito tempo. Todas as semanas… e ficamos à espera.

Cada manhã, me ergo e vou à janela. Há nuvens escuras, por vezes, não tanto como a outra de ontem, que era pesada, mas de chuva que se evapora antes de chegar ao solo.

  

 

Hoje, as ruas estão molhadas, mas nenhuma água cai. Daqui a pouco estará tudo seco, o sol a rebrilhar. O vento sopra rijo, com fúria. E o meu pobre carro continua às pintas com pó e manchado de gaivotas.

 

 

Como vamos conseguir que ela caia e se veja cair…? E lave? Não há nenhuma poesia nisto.

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publicado às 18:23

Os meus heróis

por Zilda Cardoso, em 12.04.12

  

 

Devemos ou não cultivar os heróis? Homenageá-los e honrá-los para sempre? Recordar as suas façanhas e a sua bravura? A sua inteligência e as suas estratégias? 

 

Há bons vinte anos, o arquitecto Álvaro Siza Vieira discutia comigo ou antes mostrava-me planos para novos arranjos na Casa da Eira em Moledo.

 

Assim mesmo, no chão relvado com as chagas de várias cores decorando maravilhosamente o lugar, no background; as pedras e os muros velhos, as árvores igualmente gastas, as sombras no relvado que era mais ervado com flores miudinhas brancas que eu não deixava cortar para se não perder a iluminação natural do chão...

 

Moledo, aquele Moledo era um lugar mágico, pensado pelo herói Ulisses como um lugar bom para viverem humanos sonhadores, mas onde o arquitecto escolheu ficar uma vez com os seus amigos, pernoitar, quero dizer. Estrangeiros, iam divulgar e fazer programas sobre as obras do arquitecto, eram na ocasião muito importantes, e apreciaram ficar ali.

 

Por isso, o lugar tinha adjectivações peculiares.

 

Apreciei, no convívio com ele durante vários anos, a sua complexidade psicológica, social e ética e as virtudes que o homem comum não consegue mas gostaria de possuir – fé, coragem, força de vontade, determinação, paciência... É por isso que o considero herói, apoiada na definição da Wikipedia.

 

Acredito que foi sempre guiado por nobres ideais de dignificação e de paz e os seus motivos sempre justos e aprováveis mesmo quando não me dá prazer aquilo que projecta. O que só aconteceu uma vez (o famoso plano de requalificação da avenida dos Aliados, no Porto), e decerto houve muitas razões moralmente justas que ignoro e não considerei.  

 

E que importância tem um só pequeno traçado, que neste caso era central na nossa modesta vida de portuenses, que importância tem comparado com as centenas de obras admiráveis que ele pensou e executou em todo o mundo? E de que nos orgulhamos tanto?

 

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publicado às 14:44

A cerejeira sem flor

por Zilda Cardoso, em 10.04.12

 

(Imagem da Internet)

 

 

A mota velha e escalavrada dava pouca velocidade mas muita satisfação ao novo dono que se sentia no topo do mundo, a dominar os circunstantes e as circunstâncias. E estava em férias.

 

A Mãe tinha saído mais cedo, sozinha no carro, ele foi depois: precisava daquele instrumento de poder para se sentir importante. Independente e seguro pela estrada fora, ao vento, à aventura. Chegaria mais depressa.

 

Ambos pensaram nas cerejas, gozaram com antecedência o sabor único. À hora a que chegassem, estaria ainda fresco, sem mácula, sem influências: estariam em jejum, eles, faziam questão disso. Elas estavam lá penduradas há vários dias, a decorar.

 

Ela que tinha subido à árvore antiga colhia as primeiras cerejas esbranquiçadas e duras e inigualáveis quando ouviu o ruído do motor decrépito. Sorriu. As cerejas davam-lhe muita satisfação, mas os sorrisos dele e o prazer dele a comê-las eram parte importante do processo. Tudo se revelaria muito melhor depois de ele aparecer.

 

Ele pousou a mota e veio até à cerejeira perto da água. Ela brilhava cheia de bagas luzentes de cores matizadas.

 

Subiu também. Riram-se ambos do encontro, pela manhã, longe de casa, alcandorados na árvore…

 

De súbito, suou um estalido meio seco, um grande ramo quebrou e caiu. E ele caiu com o ramo.

 

Caiu e ficou imóvel, enrolado sobre si mesmo, pernas dobradas, olhos fechados, imóvel.

 

Ela ficou do mesmo modo parada, petrificada, olhando de cima da árvore a massa quieta do corpo sobre as pedras pequenas e lisas do empedrado, pensando o que teria acontecido, o que podia ter ocorrido na sequência de tantos sorrisos e contentamentos em ambiente prometedor e primaveril.

 

Lembrou-se das palavras de um maestro célebre: aprecia aquele momento, o preciso momento em que a orquestra acaba de tocar com grande profusão e alvoroço de sons cintilantes, e há um silêncio profundo como se o último som demorasse a chegar aos ouvidos e aos neurónios dos espectadores. Depois irrompem as palmas e tudo se torna igual a muitas outras ocasiões de concertos. Todavia, o silêncio é sempre diferente.

 

Ela desceu devagar pelo tronco e viu-o de perto. Não quero pensar mais no que pensou. Pensou: poderia esvaziar o pensamento? Por que processo?

 

O que pode ter acontecido? Murmurou baixinho mal ousando ir mais além, enquanto descia.

 

A mota estava parada a uma certa distância, nada de mau sucedeu com ela que parecia ser o inimigo nº 1.

 

Tinha imaginado um dia perfeito, um belo dia no campo… encher-se de frescura perfumada e húmida e leve, ficar serenamente o resto do dia a observar isto e aquilo… Ou talvez escrever um poema sobre Maio, as suas flores e riqueza de cantos. Em vez disso, alguma coisa aconteceu porventura terrível.

 

Os frutos eram rijos, enfiavam-se na boca entre dentes, puxavam-se para fora pelo pé. O pé ficava na mão e os frutos aos pares permaneciam na boca e trincavam-se e saía o suco não muito doce, talvez mesmo melífluo.

 

Tinham discutido isso os dois e concluíram que não havia cerejas como as de Moledo, não havia. E essa era uma das razões por que aquele dia era tão peculiar.

 

Olhou-o de perto, coração apertado, perscrutou-lhe os traços… Não era a primeira vez que nas suas feições havia mistério a mais, muito mais mistério do que poderia desejar.

 

Bruscamente, ele abriu os olhos, olhou-a e sorriu. Levantou-se rapidamente e… dispôs-se a voltar às cerejas, agora a partir do chão, de pés no chão, braços estirados para o alto…

Divertido. Ou com outra emoção a iluminar-lhe o rosto.

Continuaram a rir-se, a apanhar, a comer até à saciação. Mas aqueles dois sons… ela não os esqueceria nunca: o estalido do ramo no ar e o baque do corpo nas pedras.

 

O episódio terminara tão bem, que ela nunca lhe perguntou, tantos anos se foram, nunca lhe perguntou o que se tinha realmente passado nos momentos em que ele não esteve . Que emoção…? Gostaria de ter perguntado se sentira alguma espécie de prazer com o esmagamento do seu corpo na calçada. É que lhe pareceu…

 

Ou se quis testar a sua dela capacidade de suportar o drama.

 

Ou se foi outra emoção qualquer.

 

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publicado às 16:50

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