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EVERY MORNING

por Zilda Cardoso, em 26.10.10

 

 

 

Não sei donde retirei estas palavras que encontrei agora escritas por mim a verde num velho papel de rascunho. Não posso dizer quem as inventou porque não sei. Acho que vem a propósito transcrevê-las aqui.

 

 

every morning the world is born

 

fresh clean anew

 

every morning men have an opportunity

 

but they keep on spoiling

 

everything

 

every morning

 

 

 

 

 

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publicado às 14:10

inquietação

por Zilda Cardoso, em 25.10.10

Há no tempo presente uma inquietação em todos nós.

Inquietação quanto ao futuro. Indefinida talvez mas real. E pode ter surgido com o anúncio da crise económica que é cada vez mais real e definida e traz outros desassossegos e inseguranças. Surgiu ela, a económica, de golpes financeiros, de excesso de ambição, de crimes nesse campo que se processavam surdamente de longo tempo e que, de súbito revelados, nos deixaram perplexos quanto à sua realidade e extensão. Vinham de há muito num processo encadeado e aparentemente imparável.

E isto leva-me à turbulência em França, às novas regras na Alemanha quanto a estrangeiros a viver no País, a um bom presidente em apuros na América, à inviabilidade do Orçamento em Portugal, a problemas políticos e a condições económicas precárias em todo o mundo, mais nuns países que noutros.

Isto leva-me também à emigração, ao multiculturalismo, à aceitação e reconhecimento ou não do outro. Até que ponto podemos aceitar o outro tal como é se não houver de ambas as partes vontade de colaborar para um entendimento?

Há muitos factores contra e muitos factores a favor do multiculturalismo que é a existência de várias culturas no mesmo espaço sem que alguma predomine. Seria uma situação ideal se os conflitos não surgissem, digo eu.

Penso na emigração que em certos momentos e para algumas pessoas surge como inevitável por condições económicas precárias no país de origem e por políticas desfavoráveis e perseguições devidas às diferenças de raça ou de religião e por guerras.

O que acontece em França pode ilustrar a inquietação indefinida de que falo. O que acontece na Alemanha é mais concreto e possível de compreender e tentar resolver.

Se alguém decide sair do seu país e ir viver para outro é porque alguma coisa importante e insuperável lhe falta onde está. Ele irá à procura do que lhe falta, não estará nas melhores condições para exigir. No entanto, espera ser bem tratado, como pessoa humana e digna, porque vem, se vem, com desejo de trabalhar e de se integrar.

Insuperáveis impedimentos para a integração surgem por intolerância de um lado e do outro e, em geral, têm ligação com religião, com racismo e com valores fundamentais. Isto é fácil de constatar se estudarmos a História.

No entanto, é sabido que ideias inovadoras vêm da diversidade, que é portanto vantajosa e mesmo essencial.

E há o caso de estrangeiros que vieram para estudar ou para ensinar e voltarão ou não ao seu país de origem, os que são chamados e lhes é proposto um trabalho interessante, os que vêm porque casaram com naturais do País e os que escolheram viver no País por razões e condições favoráveis de clima e outras.

Não são refugiados, nem emigrantes, são apenas estrangeiros, são outros/diferentes que não causam problemas porque não são forçados a integrar-se. Escolheram e desejam integrar-se.

O que se passa com as novas leis de emigração na Alemanha, onde há quinze milhões de emigrantes, é compreensível. O que lhes é exigido faz sentido: que aprendam a língua, que aceitem as regras.

Eu diria – façam por se integrarem!

Aprender a língua é facilitar a comunicação e logo o entendimento. E é possível que tenham que recalcar velhas heranças, mas esse é o preço. Não é tudo excelente. Aceitar as regras é o mínimo que se pode exigir, foi pela razão das regras em vigor que o País foi desejado.

E da parte da Alemanha, é necessário que tenham presente memórias recentes de nacionalismo e de nazismo. Ninguém vai esquecer onde é que isso levou.

Quanto a mim, que estudei recentemente a História da Hungria e estou a estudar a História do Nazismo na Alemanha, tenho todo esse horror bem presente e gostaria que o recordassem comigo.

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publicado às 15:03

O orgão de tubos da Sé do Porto

por Zilda Cardoso, em 23.10.10

 

 

 

 

 

O ano de 1985 foi o ano europeu da música, homenageou-se João Sebastião Bach, grande criador de música para órgão de tubos. O Cabido Portucalense e a cidade do Porto decidiram que seria ocasião de mandar construir um monumental órgão de tubos para a Sé Catedral. Os órgãos existentes na cidade estavam velhos e fora de uso e era necessário mandá-los reparar, mas a Sé teria um órgão novo.

Era um grande projecto, extremamente dispendioso, não havia com que o pagar. O interessante neste caso foi que ele foi realmente encomendado na Alemanha, na convicção de que quando as pessoas vissem o órgão no lugar, derramando e explodindo em música magnífica, não hesitariam em contribuir para o pagamento.

Não foi assim tão fácil.

O Orgão concebido por G. Jann provocou grande burburinho. O Cónego Dr. Ferreira dos Santos, o sonhador do instrumento, empenhou a vida, a carreira, toda a sua energia na concretização do projecto. Teve muitos momentos de desânimo quase absoluto e sobreviveu a isso tudo de modo que pode agora exibir o sorriso de orgulho e satisfação de quem cumpriu o que se propôs.

Teria sido um projecto megalómano? Teria sido uma insensatez encomendá-lo sem ter meios de o pagar?

A verdade é que nunca teríamos o órgão nem as magníficas horas de música esplendorosa que ele nos tem proporcionado se não tivesse havido esta ousadia. E outras que levaram à sensibilização de toda a diocese para a arte musical e litúrgica.

No passado dia 19, comemoraram-se vinte e cinco anos da sua instalação com um magnífico concerto em que foi instrumentista o Prof. Reisinger, de Viena, musicólogo e compositor, com um currículo impressionante. Tocou Bach e outros criadores dos séculos XVII e XVIII e alguns nossos contemporâneos e improvisou música organística para a liturgia em que é especialista. Não apenas na interpretação mas também na composição/improvisação, Reisinger soube de forma singular compartilhar com os ouvintes os seus sentimentos e as suas emoções. Pela atitude contemplativa e feliz que assumiram durante o concerto, creio que as melodias os tocaram, levando-os a desejar continuar a viver e a contribuir para um mundo melhor.

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publicado às 16:32

A novíssima arte

por Zilda Cardoso, em 22.10.10

 

 

A Elvira Leite ofereceu-me um livro(?) que me deixou em estado de choque. O título original em francês é A l'infini e a autora que escreve nessa língua é Kveta Pakovska. É uma tradução para espanhol e edição da Faktoria de Libros.

Estas são as informações concretas que eu colhi simplesmente olhando o volume quase quadrado de aspecto muito atraente e brilhante, preto e branco com o título a vermelho.

Tudo o mais é mistério.

Contudo, abro e na contra-capa e na primeira página completamente vermelhas encontro as mesmas informações. A página seguinte, não sei explicar, parece uma folha de borrão com riscas horizontais e verticais, letras e números a vermelho, alguns poucos a preto de lápis e muitas manchas e borrões de tinta vermelha, azul e roxa. Na seguinte, leio algumas indicações que posso entender. Diz assim: "Pronuncia a letra A em voz alta até que choque com as paredes que existem à tua volta".

As letras: arquitectura do prazer aparecem como sub-título a preto grosso.

Há duas letras enormes recortadas na espessa  folha branca vazada.

"Podes considerar este livro de diferentes formas: como um livro clássico, folheando as suas páginas, como uma escultura de papel por onde vais passear...

"Podes observar cada letra, tocá-la. lê-la em voz alta... Cada uma tem o seu próprio som, a sua própria forma e a sua própria cor. Notarás as diferenças entre elas quando escutares o som da tua voz ao pronunciá-las".

"Esta é a minha cidade de papel, desfruta-a!"

 

 

Depois cada página é um espectáculo de sons e de luzes, de cores e de formas.

Simula um livro infantil com o qual o meu neto ficou fascinado. Tem gatos de bigodes e nariz grosso e galos de crista branca e bico aquilíneo, elefantes de lábios grossos e homens e mulheres esticados e sem braços, cada metade numa página com a sua perna e o seu sapato preto de alto tacão, luas e casas que se desdobram sem perder a cor, formas geométricas, letras e números de cores vivas e folhas prateadas.

Há duas páginas que me interessam muito: uma tem um Z gigante, a branco, simplesmente decorado com traços vermelhos e a página seguinte é só de zzz vermelhos sozinhos ou sobrepostos, muitos, de diversos tamanhos e espessuras.

E depois há as vogais, mas a minha análise desta cidade fantástica vai continuar daqui a alguns dias quando estiver menos chocada e mais apta a falar sobre ela, não digo a compreender.

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publicado às 12:34

Os Freudenthal (7)

por Zilda Cardoso, em 20.10.10

 

(J. Freudenthal continua a falar da sua juventude na Alemanha, pouco tempo antes da subida de Hitler ao poder, o que aconteceu em 1933. Foram anos ainda bons para a sua família, apesar da crise económica e da crise política - os grandes partidos passaram a ser em 1932 anti-democráticos - o nacional-socialista e o comunista. O seu pai continuava com o negócio de rações, com inúmeros problemas e o irmão, que não queria estudar, deixou o liceu com o 5º ano e empregou-se como aprendiz voluntário numa empresa de automóveis. Esteve na General Motors, então um grupo importantíssimo).

 

 

“Quando cheguei ao 5º ano, principiava na Alemanha o grande mal-estar provocado pelo nazismo.

Para mim, não havia possibilidade de tirar um curso superior, por isso resolvi entrar na Escola Comercial e aprender rapidamente qualquer coisa prática.

Saí da Escola em 1928, com quinze anos, respondi a vários anúncios e comecei a trabalhar numa casa de exportação onde só me aguentei um dia. Era tão poeirento, tão chato, que fiquei desesperado. Mas quando cheguei a casa tinha uma chamada dum grupo americano de publicidade, a Erwin Waseys Company, um dos maiores grupos daquela época.

Procuravam um jovem para se formar nos vários departamentos. Fiquei á experiência durante 60 dias e gostei deveras. Tinham uma forma de trabalhar muito moderna, já eram aplicados princípios de psicanálise, estudos de mercado, categoria social dos clientes, abordagem aos meios de propaganda, enfim era a arte da venda.

Durante dois ou três meses estive com o Art Director, um inglês chamado King. Ele era o homem dos layouts, desenhos, placards, e tudo o que estivesse ligado à parte gráfica da publicidade.

Ao mesmo tempo, tirei um curso na Escola Superior de Arte onde fazíamos desenho com modelo, nos ensinavam a escrever graficamente, a apresentar textos e a fazer os placards. Passei depois pelo Traffic Department, ainda relacionado com gráfica e de seguida pelo Service Department onde se fazia o contacto directo com os clientes e elaboração de planos. No Text Department a que estávamos ligados, trabalhavam na elaboração dos textos pessoas com inclinação para a poesia.

Porém, com o agravar da crise, fazia-se muito menos propaganda ou publicidade e muito pessoal foi despedido.

Trabalhei então com um agente de publicidade independente que tinha os seus clientes e trabalhava com um pequeno grupo de colaboradores.   

Apesar de ser proveitoso para mim como experiência, sentia que não estava a progredir.

Em 1932 respondi a outro anúncio e consegui entrar para uma grande gráfica. Tinha um magazine semanal com sessenta ou mais páginas, uma secção artística e uma de propaganda onde fiquei. Era uma gráfica muito importante, pertencia a judeus e tinha uns 400 a 500 elementos.

 

Berlim era uma cidade com uma vida cultural intensa, centro da cultura europeia, mais do que Viena de Áustria ou mesmo Paris.

Havia excelente ópera, o melhor teatro - grandes artistas ali actuavam. Os Pais arranjaram-nos uma assinatura para a ópera e, quer quiséssemos quer não, tínhamos que ir. Vimos tudo o que foi apresentado naqueles anos: quase todas as peças de Verdi, de Rossini e de muitos outros grandes músicos.

Frequentávamos o teatro clássico - Schiller, Goethe, Shakespeare, e também Brecht.

Berlim tinha tudo o que havia de bom, era uma cidade belíssima, asseada, organizada, com museus admiráveis, excelentes galerias de arte e… arredores de uma beleza invulgar.

No Verão, como a temperatura era muito alta, viajávamos até ao Mar Báltico para fruir de magníficas praias. Recordo-me de ir à ilha de Bornholm, na Dinamarca, no lado Atlântico do Mar do Norte. Na Inverno, fazíamos ski nas montanhas da Áustria.

Era uma vida excelente e eu sentia-me muito satisfeito com a minha profissão.

A Alemanha tinha-se tornado um país livre depois da guerra de 14-18, e o relacionamento entre rapazes e raparigas era muito, como dizer, progressista, mas variava com a classe social.

E é claro, não havia a pílula, as coisas tinham a sua gravidade.

As raparigas com quem nos dávamos eram de famílias judaicas. Íamos buscá-las para o cinema ou para um dancing, mas os pais reparavam bem em quem nós éramos, faziam perguntas, queriam saber se podiam confiar; e tínhamos de regressar a uma determinada hora.

Naquela altura, já havia muitas raparigas empregadas, com profissões e vida independente - em Portugal só muito depois da Segunda Guerra se começou a viver desse modo.

Se queríamos namorar uma rapariga, combinávamos com ela, não pedíamos licença a ninguém e… namorar à janela, foi coisa que nunca vi até chegar a Portugal".

 

(Calculo que o namoro à janela devesse ser muito divertido e dava tranquilidade aos pais; parecia original apenas porque nos outros países europeus tinha acabado havia muito tempo. E é, sem dúvida um costume medieval, podemos ver nos filmes de capa-e-espada e em gravuras antigas).

 

"Acampávamos nas férias, rapazes e raparigas, nós tínhamos as nossas tendas e as raparigas… as delas. E se havia uma mais libertária, essa fazia o que queria mas era respeitada. Não era logo seduzida, como fariam os rapazes portugueses, que se empenhavam para as conquistar e, se conseguissem, de seguida as abandonavam".

E depois, veio o nazismo.

 

O nazismo começou a infiltrar-se e a antiga ordem foi alterada. Foi estabelecido um estado totalitário e de terror em substituição da constituição liberal de Weimar. Hitler violou de diversos modos o Tratado de Versailles sem que os Aliados quisessem intervir, e restabeceu o serviço militar obrigatório e aprovou leis raciais.  A propaganda do regime era electrizante".

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publicado às 11:00

O outro: diferente mas igual

por Zilda Cardoso, em 17.10.10

 

 

 

Fui dar o primeiro passeio com a K. que gentilmente se ofereceu para me acompanhar no necessário

e estimulante acontecimento.

Caminhámos devagar, com segurança, olhando os outros, sentindo-os passar apenas, sem cálculo, sabendo que participam da mesma realidade.

É o começo da tarde, há uma ligeira brisa, o sol brilha entre os arbustos sempre verdes e plácidos e redondos da avenida. Sinto-me bem acolhida no lugar, nestes dias sem vento desesperado, sem chuva em torrentes, sem ondas imensas assustadoras já que o mar agora conquistado, um pouco mais além, nos olha porventura com desilusão porque nunca acreditámos, nós, que a sua fúria de há dias fosse para nos destruir. Era apenas uma sua fantasia.

Passeio com a minha amiga que me conta as mais recentes ocorrências da sua vida e da dos amigos comuns de quem eu não tinha notícias há muito. Devolvo-lhe a amabilidade com outras histórias e penso no que Agustina disse sobre o confidente.

“O confidente é a testemunha da nossa realidade; sem ele a vida seria insuportável e limitada e uma experiência sem consequências”.

Se eu não tiver a quem contar as minhas aventuras, se não as contar, é como se elas não tivessem acontecido. E eu quero que “tivessem acontecido”. Por isso, conto. Por isso, a ouço contar. E por uma vez, não me interesso e não escuto “uma cigarra que canta, uma pedra que rola, uma flor que morre”. Ouço a voz da minha amiga e ouço a minha. E regresso satisfeita.

 

Porque compreendo que ela é diferente de mim e eu sou diferente dela, somos ambas distintas dos que nos cruzam, mas precisamos deles, preciso deles e dela para sentir que existo. São esses que me dão o ser. A minha existência é real a partir da sua visão de mim –  isso lhes dá importância aos meus olhos. E eles precisam que eu lhes dê importância.

 

A atitude, os seus gestos, o comportamento da K. têm uma qualidade insuperável, um valor enorme para mim, porque ao falar-me dela própria, faz-me ver a diferença que há entre nós. Conhecendo-a… conheço-me.

Procurei nela conforto e segurança, ela sentiu-se responsável. Nenhuma de nós é estrangeira para a outra. Ela é apenas a outra, a que faz de mim o que eu sou.

 

Fico a saber o que pode ser o outro e,  do mesmo modo,  que ninguém existe nem quer existir isolado no mundo. Somos responsáveis uns pelos outros e tudo nos diz respeito - o que se passa nas minas do Chile e nas da China, em Paris e no Porto, em New York e em qualquer outro lugar. E não apenas consideramos os efeitos dos desastres, mas ainda as sequelas das festas.

 

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publicado às 07:11

“As coisas simples causam confusão”, diz Agustina.

por Zilda Cardoso, em 15.10.10

Pedi à M. para me trazer de casa um frasquinho mínimo de água-de-colónia, uma amostra, coisa fundamental para a minha vida naquele momento.

Trouxe três frascos, dois estavam vazios, um tinha uma embalagem complicada de que não consegui livrá-lo sem poderosa ajuda.

Depois ficou o frasco com o líquido a reluzir, ligeiramente azul, transparente e bem cheiroso sobre a mesa até ao dia seguinte. Contudo, quando me fui servir dele, não consegui tirar a tampa - um objecto branco minúsculo, translúcido, bem bem apertado para nada se perder do precioso líquido que me faria a mim conquistar com tranquilidade o mundo. Então o A. tentou abrir com não sei que instrumento e a tampa saltou e nunca mais se viu.

A água preciosa não sobreviveria tempo nenhum no recipiente sem a tampa, por isso, eu o conservei na minha mão. Enquanto isso, o A. e a C. que assistia à cena, andaram de joelhos no chão por largo tempo, acenderam todas as luzes, arrastaram cadeiras e mesas e a cama e… nada, não encontraram nada. Sumiu, evaporou-se, eclipsou-se, desapareceu. Zero, nada, coisa nenhuma.

Diverti-me a observá-los naquela difícil tarefa de encontrar uma coisa que era fundamental para alguém e, para mim, no momento já sem valor. Eu continuava, apesar disso, com o objecto na mão, vertical, para que nenhuma gota se derramasse.

De súbito, a tampa apareceu a alguns metros de distância sobre o estreito rodapé da parede em frente, para onde tinha sido catapultada pelo instrumento rígido do resgate. Foi uma alegria, um entusiasmo, uma festa. “Quem porfia”…  “Se eu desistisse”… “Eu nunca desisto”… e por aí fora, foi o que ouvi repetir.

Pus a tampa no frasco (chamar-lhe frasco é excessivo, aquilo é uma coisinha cristalina que mal se vê) que ficou sobre a base de vidro totalmente imperceptível na mesa-de-cabeceira.

No dia seguinte, depois dos arranjos matinais, procurei a água perfumada para dar a mim própria um ar supostamente mais delicado, civilizado, talvez. E, imaginem, ela não estava lá nem a base de vidro onde ficara alojada. Tinham vindo arrumar o quarto e decidiram levar a base transparente que ali permanecia há vários dias, de facto desde a primeira hora da minha estada no hospital. Levaram a base e o que lá estava.

Quando a empregada entrou de novo, toda de verde aos quadradinhos mas não bastante risonha, para finalizar as limpezas, ousei perguntar com muita esperança, mas timidamente, se podia procurar o frasquinho, se ela podia procurar o frasquinho, talvez nos corredores… na copa... ou não sei onde. E ela que já tinha empreendido comigo primitivas buscas ali, disse, sim, senhora, vou procurar.

Não chegou a sair do quarto – o jovem frasco estava, não na base transparente que, essa, tinha na verdade desaparecido, mas sobre o pano bordado, o napperon cheio de flores azuis e doutras cores suaves pousado sobre a mesa. E brilhava azulado e puro como uma água-marinha de berílio e silicato de alumínio, pedra semi-preciosa, como as que há no Brasil e um pouco por todo o mundo, mas não em Portugal.

Não é uma história divertida?! De gemas e líquidos azuis raros e aromáticos? E de persistência e de caça ao tesouro e de humildade? E de paciência? Quanto a imaginação…

 

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publicado às 13:00

O silêncio de Agustina

por Zilda Cardoso, em 13.10.10

 

 

Em 1959, Agustina foi convidada a participar num congresso em Aix-en-Provence sob o tema geral - o destino da Europa - com grandes figuras da literatura europeia. Posteriormente, publicou o livro de que tenho falado em que descreve a viagem por Espanha, França e Itália, uma espécie de diário com reflexões preciosas sobre diversas questões, entre elas, o silêncio.

No dia em que ia ser discutido o problema da técnica, Agustina diz das suas impressões muito bem-humoradas sobre alguns participantes que vão aparecendo na sala ao mesmo tempo que ela distribui sorrisos já sentada numa cadeira rústica pintada de azul-claro. Escreve de como é difícil alguém conservar a dignidade intelectual sentada numa cadeira tão ingénua, mas é a que ela escolhe. Ainda uma vez fala de convívio e de silêncio.

 

 

"Entre uma multidão que se interpela, que se exprime afanosamente, que se chama à distância, que se abre em aberrantes votos de confiança, que se oferece, que se interessa, que arma pavilhões e convida amigos e desperta vizinhos, encontrar alguém que está calado e permite que façamos a respeito dele suposições erradas e fantásticas – isso é como descobrir a pedra filosofal. Para o diabo o mundo elástico das boas intenções, as campainhas no pescoço do belo senso; para o diabo os sindicatos da simpatia, o quase entendimento, a meia-verdade, o saltinho sobre o ombro da minúscula razoabilidade! Fechem as máquinas de falar, desandem os botões da verbosidade, façam má cara aos visitantes, despeçam os oradores oficiais, cancelem o contrato dos conferencistas. Silêncio, silêncio… Escondam o rosto um momento, desçam as cortinas, preguem as janelas, chorem, se quiserem, mas silêncio! Dai tempo a ouvir um anjo que passa, uma cigarra que canta, uma pedra que rola, uma flor que morre. Também isto é sério, também isto é justo, também isto é revelação, e caridade, e inteligência. Dai tempo a vós próprios, que sois vivos e que o podeis saber. E silêncio."

 

 

(imagens da Casa da Eira em Moledo do Minho)

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publicado às 08:04

DOIS SILÊNCIOS

por Zilda Cardoso, em 11.10.10

 

Tenho estado em retiro de silêncio e vou continuar por uns tempos. O silêncio neste caso é o imposto pelo corpo - a sua imobilidade. E como continuo com a Embaixada a Calígula como livro de cabeceira, de sabedoria incontestável, procurei nele o que Agustina diz sobre o silêncio.

 

 

 

 

Encontrei na recente edição, páginas 135 e 136, um texto magnífico sobre a realidade que vivo e o tema que me ocupa e em que gosto de reflectir.

 

De resto, a obra é um manancial de saber, de erudição - cada frase… … cada linha… cada página é para analisar, admirar e tentar entender.

 

Deixo-lhes o silêncio de Agustina.

 

 

 

 

“De maneira nenhuma um silêncio se parece com outro silêncio. Se cada pessoa se define pelas palavras que profere, pela capacidade de manifestar as suas ideias, todas se distinguem no silêncio de que são capazes. Há silêncios místicos e silêncios timoratos. Há os que podem mover o mundo e os que não têm mais força que a imutável presença de um réptil entorpecido. Há o silêncio delicado do sábio e há o silêncio tenebroso do traidor. Se uns são delirantes, outros podem ser loquazes e cheios de risos; se aqueles balbuciam, outros exclamam.

 

O silêncio é, de todas as manifestações humanas, a que tem talvez mais poder; o que não se obtém com a cursiva forma escrita, com a convicção da voz e a intimação da palavra, o silêncio pode-o conseguir, pois age sobre a imaginação e, mais directamente, sobre a consciência. As pessoas que nada têm para confessar ou que confessam demasiado são quase sempre sinistras ou mentirosas. Mas alguém que é como uma gota viva de mercúrio, que se agita inventivamente, que é perseverante no silêncio e ocupado no seu ser, é uma espécie de fábula.”

 

 

 

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publicado às 15:13

Ditador, precisa-se

por Zilda Cardoso, em 04.10.10

 

A democracia é muito penosa de viver. Quase tão penosa como a ditadura. Em certos momentos é mais. Na verdade… em muitos momentos!

 

Ao ver como se discute seja o que for, horas e dias e semanas, até à exaustão, sem aparentemente chegar a qualquer resultado, sem ver o fim das discussões, mas inventando a propósito dramas de todo o tamanho, contos e novelas com que as pessoas se entretêm… penso como teria sido agradável e proveitoso ter nomeado um déspota superinteligente e esclarecido, um génio, para nos dizer de que modo seria melhor para todos pensar, ver, agir. E que se executasse de boa vontade tudo o que ele dita, logo a seguir, com todo o rigor e tal qual ele ditara.

 

 

 

Vamos lá ver: arrisco-me a ser chamada fascista ou, muito pior, nazista nietzschteana, por exemplo,  mas é tão divertido imaginar um tirano, nascido e criado connosco no período democrático e criativo, escolhido por nós…

 

Eu explico: a vida política (pelo menos aqui neste Portugal, os outros depois copiariam) resumia-se a dois períodos pacíficos relativamente recorrentes.

1)    O da democracia

que é o tempo da criatividade, da confusão, das rupturas e da controvérsia sem fim.

Será um período em que sentimos que não precisamos ser independentes, resolver, decidir, ter o comando… sempre - sentimentos apropriados a este período em que o fundamental é pensar e descobrir e envolvermo-nos.

Andaremos enrolados nessas discussões que deixam qualquer um embaraçado quanto ao caminho a seguir, quanto à estratégia que é ardil, como se tudo fosse jogo de futebol que é preciso ganhar, e vamos apenas encontrar o caminho do interesse comum para o bem comum. (Que é o único que interessa, visto não sabermos viver senão em comunidade).

Até podemos encontrar a verdade, teremos participado nessa descoberta tal como aquele génio que vamos daí a pouco escolher como líder e que participa e surge do mesmo caldo de que nascemos (isto é importante repetir). A ocasião surge em que alguém esclarecido e preparado para tarefas de grande relevo e valor pensa por todos nós e executa ou manda executar, espécie de abelha-mestra de gigantesca colmeia para a qual todos trabalham.

 

 

2)    O da autocracia

que seria o tempo de governo de um, desse, com os outros a deixarem-se governar.

Esse seria alguém que tivesse processado no seu PCVP - …verdadeiramente pessoal - toda a informação obtida, sem desperdício, e que gostasse de governar e não de representar. Mostraria com a pompa merecida - não mais nem menos - o seu programa. De uma vez só.

O seu período de reinado absoluto será para os outros a pausa na governação ou na confusão, será a ambicionada descoberta da verdade e de outras coisas.

Se cada um de nós quer a todo o custo experimentar a verdade, deve saber que "cada qual tem uma verdade ao seu tamanho" e há as aparências, as sombras, as formas, as ideias... E também "verdades que só aproveitam àqueles que são capazes de participar na sua descoberta" (Agustina).

Pois.

É isso, nem sempre. Quase sempre.

Revelo agora um segredo: saberemos todos uma coisa fundamental quanto ao ditador, déspota ou tirano, autocrata, o que quiserem: não estamos, a população não está minimamente preocupada porque ele tem que ser eliminado ao fim de 5 anos, imperiosamente.

Essa depuração deve ser feita com regularidade, sem qualquer complacência. Para não haver dúvidas, mandamos cortar-lhe a cabeça como sempre faz a Rainha no País da Alice, sem que haja problema.

A interrupção é necessária em qualquer dos estados ou períodos políticos. É necessário passar de um para outro ciclicamente, sabendo que o que vem, o déspota escolhido vai começar o seu reinado mais à frente, vai começar um reinado que evoluiu no período do tumulto graças à contribuição de todos.

 

 

 

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publicado às 11:46




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