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Aproveitei a temperatura amena sem o costumeiro vento do norte para sair para o lado oposto ao habitual. Fui até ao Edifício Transparente que é feiissimo, mas o mais importante ponto de atracção e de lazer deste lado da cidade. É o prolongamento do Parque da Cidade para a orla marítima, uma ideia muito feliz: a zona verde vai até a praia e pode passar-se directamente do parque para o Edifício Transparente por uma pequena ponte sobre a estrada marginal.
O Parque é maravilhoso, um conto de fadas que andou a ser pensado durante sessenta anos e entrou em realização concreta em 1990. Pedras de construções demolidas foram aproveitadas para muros e bordaduras de caminhos e pavimentos e dão-lhe um ar rural e campestre. Há relvados e locais arborizados, um picadeiro, lagos com habitantes bravos e simpáticos, tanques, abrigos, o Pavilhão da Água, lojas de associações sem fins lucrativos, retaurante, casa de chá. Há sítios muito apropriados para contemplação e meditação e outros para a prática de desportos.
Porém, o edifício dito transparente ficou anos sem utilização. Actualmente, tem escolas de surf, ginásio, lojas de artigos desportivos, restaurantes e cafés com esplanadas sobre a praia. É um gosto ver, neste tempo de Verão, o movimento de adolescentes e de jovens "aprendendo com quem sabe" ou ensinando a quem quer aprender.
Voltarei a falar, com sotaque do Norte, do Parque - tema muito agradável porque dele nos orgulhámos, nós, portuenses.
A casa conserva reminiscências do antigo convento. Na cave, grossas colunas quadradas deixadas à vista e túneis que se adivinham testemunham outras vidas, outros tempos. É perto da Assembleia Nacional, no começo da Avenida ...
As colunas dão às salas um ar de beleza rude e sofisticada, procurada e conseguida, a que a claridade, escassa e muito coada, acrescenta o mistério. De Inverno, é necessário manter a luz acesa todo o dia, dizem-me. Porém, no piso superior, o rés-do-chão, o sol penetra à-vontade pelas janelas largas iluminando os recantos e dando alegria aos corredores.Tudo muito novo e resplandecente.
Sentamo-nos no sofá da sala de estar ao nível da rua e eu comecei a fazer perguntas sobre os objectos de porcelana dos nichos das paredes. Vieram à memória dos donos da casa, meus anfitriões, as histórias que os ligam a cada uma daquelas peças antigas Vista Alegre e Companhia das Indias, cor verde e rosa, os pratos, as travessas, as terrinas. A luz intensa fazia-as parecerem luminosas e brilhantes e eu fiquei encantada naquele ambiente de sonho, com os pés a uns tantos centímetros do chão.
"Foram todas herdadas de um criado", dizia o meu amigo. "Eu conto-lhe a história".
"O João Freitas era o motorista do meu tio-avô que quando regressou a casa da família em Esmoriz dispensou os seus serviços. Um dia, o meu pai encontrou-o na rua, no Porto, com o ar mais modesto e envelhecido deste mundo.
"Que te aconteceu, Freitas?"
"Perdi o emprego, Sr. D. Miguel".
"Olha, aparece amanhã lá na empresa e eu vejo o que posso arranjar."
Foi-lhe dado o emprego e o homem ainda trabalhou vários anos na Vinícola. A ideia dele que vivia sozinho era arranjar dinheiro para pagar a sua entrada no Lar do Comércio.
Um dia foi ter com o meu pai e pediu-lhe que fosse a sua casa. 'O senhor não me vai dizer que não.'
Tanto insistiu, repetindo sempre não me vai dizer que não que o meu pai foi lá, e eu acompanhei-o, e vivi intensamente a cena.
Era um quarto modesto, contra uma das paredes havia um grande guarda-fatos. Em frente a ele, o João Freitas ainda repetiu: 'O senhor não me vai dizer que não!'
'Mas o que é, homem, diga lá'.
Então o João abriu o armário e o meu pai e eu vimos com assombro, em grandes prateleiras, uma porção considerável de belas peças antigas de porcelana oriental.
'Isto é para o senhor', disse. 'O senhor prometeu-me, não me vai dizer que não'.
O João, homem sensível e de bom-gosto, tinha andado aqueles anos todos a coleccionar o que sabia que nós apreciaríamos. Oferecê-lo agora, era a sua forma atenciosa e carinhosa de agradecer... Seria extremamente indelicado recusar.
E foi assim que eu e os meus irmãos herdámos essas peças e outras, para nós, de inestimável valor."
sombra ambígua
redonda
tem disfarçada
a minha sombra
em qual me deito?
por que esconde
a sombra do guarda-sol
a minha sombra?
não me deito
em qualquer sombra
mas qual é a minha?
terei eu uma sombra?
apenas vejo a sombra
do guarda-sol
uma sombra gorda
fecunda de sombras
o que poderá nascer
de uma sombra?
a minha sombra?
fantasmas ideologia nuvens?
fico-me no PRAZER da sombra
Pintura de Justo Luís
É um daqueles dias em que preciso de ensaiar o sorriso ao espelho.
Ele demora a vir. E quando vem... não me reconheço. Aquela, em frente a mim, tem um sorriso que não é meu.
Eu estou muito zangada, tão zangada!
Não conheço nenhuma outra maneira de estar no mundo, hoje.
Saio da frente do espelho.
Não resultou, desta vez.
A outra fica lá com o sorriso. Eu vou embora, zangada.
Decididamente, este não é o tempo das cerejas.
Terá sido em Maio.
Apesar disso, em Agosto, tenho cerejas para vos oferecer. São especiais. São de celulóide - o material de nitrocelulose e de cânfora que era usado para fabricar certos objectos de sedução. Como sejam cerejas, como sejam bonecas.
Bonecas eram sempre brilhantes, macias, suaves, agradáveis ao toque. As crianças adoravam-nas. Às vezes, tinham olhos azuis que abriam e fechavam.
As cerejas usavam-se como objectos decorativos, em chapéus, por exemplo.
No livro, são objecto simbólico da ambiguidade que sempre encontro nos seres e nos acontecimentos. Desejariamos reconhecer-nos como pessoas unas e que os acontecimentos não fossem confusos, não oscilassem permanentemente entre o realidade e a ficção, entre o verdadeiro e o falso. Ambicionamos a compreensão total, a beleza, o bem, a verdade, a pureza... sabendo que não atingiremos nenhum destes valores em absoluto.
As cerejas de celulóide podem simbolizar essa oscilação.
Parecem macias, frescas, maduras, mas são secas e duras, é impossível tragá-las. Fazem um ruido perturbador quando tocam umas nas outras e, no entanto, decoram, satisfazem e desgostam, seduzem. Seduzem tal como as verdadeiras: apetitosas e vermelhas, suculentas, são a fruta mais saborosa e delicada e subtil que existe.
Desejo que as cerejas que aqui vos ofereço tenham algumas destas qualidades.
Vou apresentar o m/ último livro no recinto da Feira de Ponte de Lima, poucos meses depois de o ter apresentado no Porto e em Lisboa.. Há uma feira do livro de 2 a 8 de Agosto e alguns autores foram convidados pela vereação da cultura da C.M. a apresentarem ao público as suas obras. Vou c/ as Cerejas de Celulóide e estou a pensar num pequeno texto, simples e animado para animar as pessoas a lê-lo. Devo convencê-las de que o assunto, que é matéria conflitual - uma herança - , pode dar lugar a uma história que vale a pena ler devagar, reflectindo e... agir de acordo. E que a imaginação também pode ser usada de forma racional. E QUE ESPERO QUE RECRIEM O TEXTO QUANDO O LEREM. E que se divirtam, sobretudo que se divirtam, descobrindo ao mesmo tempo se há ou não nele sentido de humor. E que compreendam que tentei escrever o que sentia, se bem que guardasse alguma coisa para mim. E que... E que...
Que compreendam que há um calor afectivo extensivo a todos os que me lerem ou ouvirem.
Ora, é melhor não dizer nada disto.
Vou falar simplesmente da história da herança e dos problemas que trouxe.
Mas apenas na próxima semana estarei bem atenta ao blog e aos m/ novos amigos bloguistas.
Tal como Jerry Seinfeld e o seu amigo George, ambiciono escrever uma história em que nada acontece, absolutamente nada. Parece fácil, não é fácil. Quem está interessado em ler uma história em que nada acontece?
No entanto, essa é uma das minhas aspirações.
Na perspectiva de um dia de muito vento, antes que ele soprasse rijo, saí, cerca das 9 da manhã para uma volta à beira-mar.
Vi os preparativos para um dia comprido, primeiro sábado de Agosto. Preparativos gerais de arranjo e limpeza nas esplanadas e nos cafés. Vi ainda copos pelo chão, latas e outros desperdícios que cada um e todos deviam deixar num dos sacos colocados na praia e na esplanada. Há-de vir um homem tristonho varrer aquilo ou zangado já que sabe ser uma actividade malbaratada.
Comparei com o dia de ontem pelas 9 da tarde, ainda com o sol acima do horizonte, tão intenso de luz dourada que a água era de cor maravilhosamente azul. Para o sol, ia haver intervalo para descanso, mas na terra daí a pouco o movimento, a música e as vozes, os copos seriam uma loucura pela noite dentro.
Já havia gente estendida na areia queimada e algumas pessoas tomavam banho na água classificada recentemente de boa. Os resultados das análises afixadas na praia comprovam isso. Há zonas vigiadas e concessionadas (há um nadador salvador e um posto de socorros), zonas vigiadas e outras não vigiadas e até perigosas.
A minha deambulação levou-me tranquilamente à Avenida do Brasil, a pensar de novo no trajecto do sol que ainda está do outro lado, se bem que se tenha erguido há muito. De modo que a cor do mar não é como a de ontem nem a das árvores nem a das rochas.
A ruminar estes pensamentos, de olhos no chão, vejo estampado no cimento, de quando em quando, indicações preciosas - boicote ao voto, apanhe os dejectos do seu cão, penso por mim, vou conseguir.
Subi então a um pequeno muro e olhei para baixo para a espécie de superficie lunar de rocha metamórfica onde as gaivotas costumam pousar. E pensei por mim: eu não sei voar, não sei se sei morrer, não quero saber morrer, quero saber voar, quero voar, voar, não saber, voovoovoov, vou voar, vou, vou saber como as coisas se dão, saber onde nasce o silêncio, ver a noite, saber para além, ver-Te.
Mas não consegui.
Não acontece nada.
Quando o sol se doura e a praia é deserta...
Quando o bando silencioso de asas brancas baixa o voo, sombreia a água, desaparece...
Quando os cães brincam a banharem-se e a disputarem entre si, juntos, e se vão...
Quando o mar num rugido terno sem convicção cava na areia sucalcos indecisos que apenas os meus pés e os insectos marcarão...
Então o sol e o mar, sobre os grandes painéis de areia fina e molhada e dura, pintam os poemas que Sophia nos lê.
Conto um pequeno episódio que pode estar ligado ao conceito base da importantíssima organização de que fala hoje Laurinda Alves no seu blog.
Há anos, num dia de muito calor de Agosto, convidámos alguns dos nossos amigos para almoçarem connosco na Casa da Eira de Moledo. Foi posta uma mesa comprida perto da piscina à sombra do grande castanheiro cheio de eriçados ouriços. Era um encontro que eu queria sem formalidades, mas a Elsa Reid disse: "Desculpa, mas tens de pelo menos dar a direita ao embaixador de França e sentares à tua esquerda o José Manuel Durão Barroso que é secretário de estado..."
Assim se fez, de modo que tive o gosto de conversar demoradamente com o meu vizinho da esquerda e dar conta da sua enorme cultura e da sua inteligência.
A certa altura, apercebi-me de alguma agitação num sector longínquo da mesa, onde estava o Alfredo Calém disputando com a Elsa, tão amiga de formalidades como de liberdades. A Elsa levantou-se e dirigiu-se com grande aprumo para a piscina, tirou os sapatos e entrou na água vestida com uma saia de pregas que enfunou como a da Ferreirinha no Douro. Ela deu algumas braçadas, muito séria mas divertidíssima, e logo depois, saltaram para a água a Margarida Sousa Uva, a Xana Silva Araújo, a embaixatriz ... que se riam e faziam piruetas.
Toda a gente se levantou e se aproximou para ver melhor a cena, encantada com o entremez que atingiu o ponto mais alto quando a embaixatriz, alta, loira e lindíssima saiu da água como de um quadro de Botticelli, se encaminhou para o lugar onde estava a "multidão" interiormente embasbacada e se sentou numa cadeira de verga como uma rainha no trono, perfeitamente indiferente ao borborinho.
É que ela usava um vestido branco que, molhado, ficou transparente e deixava ver a roupa interior às florinhas.
Houve um outro momento, sério, que não posso deixar de registar.
J.M. Durão Barroso perguntou o que pensava eu do seu futuro. E eu respondi:"Deixe-me reflectir um pouco mais. Logo que chegue a uma conclusão, digo-lhe".
Na verdade, não quis explicar-lhe que tinha uma ideia bastante clara do que seria o seu futuro. Seria brilhante, mas não tão brilhante como se esperaria que fosse.
Não sei em que me baseava.
Em nada, porque me enganei redondamente.
Durão Barroso tem sido na Europa uma estrela cujo rasto cintilante é necessário seguir - star tracking.
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