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"Registo do gorjeio"

por Zilda Cardoso, em 03.10.14

As horas não passavam, estava terrivelmente maçada. Decidi que há muito não visitava os pássaros do estuário, quase me esqueci deles.

Levei pão seco e dei-o aos patos da minha preferência, sempre aguerridos e ávidos ou esfomeados, antes que as gaivotas invadissem o terreno e não deixassem ninguém mais aproximar-se.

Pelo caminho, pensei: sempre o mesmo, o mesmo caminho. O mar á direita com reflexos prateados do sol de sempre. O rio com cores brilhantes. As árvores, meu Deus, as árvores, os passeios, as casas, as ruas, os nomes… tudo igual e impossível. O céu é mais uma vez azul e não tem nuvens nem desenhos de algum padrão.

O que esperava eu que me desse contentamento? Que me libertasse? Esta redundância?  

Os carros passam nos mesmos sentidos de ontem e de anteontem, as pessoas para lá e para cá usam os mesmos gestos mais ou menos fluidos, as gaivotas soltam os gritos estrídulos de todos os dias…

Não me é possível continuar a apreciar o lugar, a menos que uma bomba arrase tudo, esvazie tudo, e a vida possa começar a partir do deserto. Comece inteiramente nova.

Reparo, olhando com intensidade e concentração, que as árvores e as suas folhas parecem esmaecidas, mas os reflexos na água têm já algumas das sombrias cores garridas do Outono. Os sons amadurecem e os odores são mais murchos. Como pude não reparar?

Já não é Setembro, ainda não é Outono.

Do meu lugar ao sol, retirado, fico-me a contemplar os folguedos dos pássaros mergulhadores e dou-me conta da alegria com que mergulham e correm e saltam e fogem firmes.

O mar não tem uma onde hoje, agora, apenas fulgurações e promessas. O ar incrivelmente quente sem humor algum, é abafado e estranho.

Aproximo-me da imensidão do mar, ao meu lado e, no meu desejo de ternura, penso no que há nele de transcendente, se há.

De súbito, compreendo.

Um desses pássaros compactos e enormes passou por mim e tocou-me ligeiramente. Oh, muito ligeiramente! Já me sinto bem, acarinhada, mais curiosa ainda e animada.

Estou rodeada de vida crepitante, onde estiver, participo nela quer queira quer não, (e quero), como num jogo que me desperta e me possibilita sentir-me menos só.

Como doutras vezes, concluo que todo este mundo me diz respeito, não necessito ter medo… apenas o olhar disponível.

Agora vejo e sei que vejo, o que for. Apenas preciso de encontrar as cores das palavras apropriadas ou as palavras das cores adequadas, as que correspondam ao meu sentir, ao meu ver e ao tempo que passa, para poder falar disto.

"Registo do gorjeio", palavras de Barthes citadas por E.P.C.

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publicado às 07:40





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