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As horas não passavam, estava terrivelmente maçada. Decidi que há muito não visitava os pássaros do estuário, quase me esqueci deles.
Levei pão seco e dei-o aos patos da minha preferência, sempre aguerridos e ávidos ou esfomeados, antes que as gaivotas invadissem o terreno e não deixassem ninguém mais aproximar-se.
Pelo caminho, pensei: sempre o mesmo, o mesmo caminho. O mar á direita com reflexos prateados do sol de sempre. O rio com cores brilhantes. As árvores, meu Deus, as árvores, os passeios, as casas, as ruas, os nomes… tudo igual e impossível. O céu é mais uma vez azul e não tem nuvens nem desenhos de algum padrão.
O que esperava eu que me desse contentamento? Que me libertasse? Esta redundância?
Os carros passam nos mesmos sentidos de ontem e de anteontem, as pessoas para lá e para cá usam os mesmos gestos mais ou menos fluidos, as gaivotas soltam os gritos estrídulos de todos os dias…
Não me é possível continuar a apreciar o lugar, a menos que uma bomba arrase tudo, esvazie tudo, e a vida possa começar a partir do deserto. Comece inteiramente nova.
Reparo, olhando com intensidade e concentração, que as árvores e as suas folhas parecem esmaecidas, mas os reflexos na água têm já algumas das sombrias cores garridas do Outono. Os sons amadurecem e os odores são mais murchos. Como pude não reparar?
Já não é Setembro, ainda não é Outono.
Do meu lugar ao sol, retirado, fico-me a contemplar os folguedos dos pássaros mergulhadores e dou-me conta da alegria com que mergulham e correm e saltam e fogem firmes.
O mar não tem uma onde hoje, agora, apenas fulgurações e promessas. O ar incrivelmente quente sem humor algum, é abafado e estranho.
Aproximo-me da imensidão do mar, ao meu lado e, no meu desejo de ternura, penso no que há nele de transcendente, se há.
De súbito, compreendo.
Um desses pássaros compactos e enormes passou por mim e tocou-me ligeiramente. Oh, muito ligeiramente! Já me sinto bem, acarinhada, mais curiosa ainda e animada.
Estou rodeada de vida crepitante, onde estiver, participo nela quer queira quer não, (e quero), como num jogo que me desperta e me possibilita sentir-me menos só.
Como doutras vezes, concluo que todo este mundo me diz respeito, não necessito ter medo… apenas o olhar disponível.
Agora vejo e sei que vejo, o que for. Apenas preciso de encontrar as cores das palavras apropriadas ou as palavras das cores adequadas, as que correspondam ao meu sentir, ao meu ver e ao tempo que passa, para poder falar disto.
"Registo do gorjeio", palavras de Barthes citadas por E.P.C.
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